16 julho 2012

O homem em oração (8): A leitura da Bíblia, alimento para o espírito




A leitura da Bíblia, alimento para o espírito

Estimados irmãos e irmãs!
Estou muito feliz por vos encontrar aqui na praça em Castel Gandolfo e por retomar as audiências, interrompidas no mês de Julho. Gostaria de continuar o tema ao qual tínhamos dado início, ou seja, uma «escola de oração», e também hoje, de uma maneira um pouco diversificada, sem me afastar desta temática, referir-me a alguns aspectos de índole espiritual e concreta, que parecem úteis não apenas para quem vive — numa região do mundo — a temporada das férias de Verão, como nós, mas inclusive para todos aqueles que estão comprometidos no trabalho diário.

Quando temos um momento de pausa nas nossas actividades, de modo especial durante as férias, muitas vezes pegamos num livro, que desejamos ler. É precisamente este o primeiro aspecto, sobre o qual hoje gostaria de meditar. Cada um de nós tem necessidade de momentos e de espaços de recolhimento, de meditação e de calma... Graças a Deus é assim! Com efeito, esta exigência diz-nos que não fomos feitos apenas para trabalhar, mas também para pensar, ponderar, ou simplesmente para acompanhar com a mente e o coração uma narração, uma história com a qual nos identificarmos, num certo sentido, «perder-nos», para depois nos encontrarmos enriquecidos.

Naturalmente, muitos destes livros de leitura, que temos nas nossas mãos durante as férias, são sobretudo de evasão, e isto é normal. Todavia, várias pessoas, especialmente se podem contar com espaços de pausa e de descanso mais prolongados, dedicam-se à leitura de algo mais comprometedor. Então, gostaria de lançar uma proposta: por que deixar de descobrir alguns livros da Bíblia, que normalmente não são conhecidos? Ou dos quais, talvez, ouvimos alguns trechos durante a Liturgia, mas que nunca lemos na íntegra? Com efeito, muitos cristãos já não lêem a Bíblia, e têm um seu conhecimento muito limitado e superficial. A Bíblia — como diz o nome — é uma colectânea de livros, uma pequena «biblioteca», nascida ao longo de um milénio. Alguns destes «livrinhos» que a compõem permanecem quase desconhecidos para a maior parte das pessoas, inclusive de bons cristãos. Alguns são muito breves, como o Livro de Tobias, uma narração que contém um sentido muito elevado da família e do matrimónio; ou o Livro de Ester, em que a rainha judia, com a fé e a oração, salva o seu povo do extermínio; ou ainda mais breve, o Livro de Rute, uma estrangeira que conhece Deus e experimenta a sua Providência. Estes pequenos livros podem ser lidos inteiramente numa hora. Mais exigentes, e autênticas obras-primas, são o Livro de Job, que enfrenta o grande problema da dor inocente; o Qoelet, que impressiona pela modernidade desconcertante com que põe em discussão o sentido da vida e do mundo; o Cântico dos Cânticos, maravilhoso poema simbólico do amor humano. Come vedes, são todos livros do Antigo Testamento. E o Novo? Sem dúvida, o Novo Testamento é mais conhecido, e os seus géneros literários são menos diversificados. Porém, a beleza da leitura integral do Evangelho deve ser descoberta, assim como recomendo os Actos dos Apóstolos, ou uma das Cartas.

Caros amigos, para concluir, hoje gostaria de sugerir que conserveis ao vosso alcance, durante a temporada de Verão, ou nos momentos de pausa, a Bíblia Sagrada, para a saborear de modo novo, lendo inteiramente alguns dos seus livros, aqueles menos conhecidos e também os mais famosos, como os Evangelhos, mas numa leitura contínua. Assim, os momentos de descanso podem tornar-se, além de um enriquecimento cultural, inclusive um alimento para o espírito, capaz de nutrir o conhecimento de Deus e o diálogo com Ele, a oração. E esta parece ser uma bonita ocupação para as férias: pegar num livro da Bíblia, gozar assim de um pouco de descanso e, ao mesmo tempo, entrar no grande espaço da Palavra de Deus e aprofundar o nosso contacto com o Eterno, precisamente como finalidade do tempo livre que o Senhor nos concede.

 PAPA BENTO XVI
Castel Gandolfo
Quarta-feira, 3 de Agosto de 2011


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O homem em oração (7): O povo de Deus que reza: os Salmos

Queridos irmãos e irmãs

Nas catequeses precedentes, (1, 2, 3, 4, 5, 6) reflectimos sobre algumas figuras do Antigo Testamento particularmente significativas para a nossa meditação sobre a oração. Falei a respeito de Abraão, que intercede pelas cidades estrangeirasacerca de Jacob, que na luta nocturna recebe a bênçãode Moisés, que invoca o perdão para o seu povo; e sobre Elias, que reza pela conversão de Israel. Com a catequese de hoje, gostaria de começar um novo trecho do percurso: em vez de comentar episódios particulares de personagens em oração, entraremos no «livro de oração» por excelência, o livro dos Salmos. Nas próximas catequeses leremos e meditaremos sobre alguns dos Salmos mais bonitos e mais queridos à tradição orante da Igreja. Hoje, gostaria de os introduzir, falando sobre o livro dosSalmos no seu conjunto.

O Saltério apresenta-se como um «formulário» de orações, uma colectânea de cento e cinquenta Salmos, que a tradição bíblica oferece ao povo dos fiéis para que se tornem a sua, a nossa oração, o nosso modo de nos dirigirmos a Deus e de nos relacionarmos com Ele. Neste livro, encontra expressão toda a experiência humana, com os seus múltiplos aspectos, bem como toda a gama de sentimentos que acompanham a existência do homem. Nos Salmos entrelaçam-se e exprimem-se alegria e sofrimento, desejo de Deus e percepção da própria indignidade, felicidade e sentido de abandono, confiança em Deus e solidão dolorosa, plenitude de vida e medo de morrer. Toda a realidade do crente conflui nestas orações, que primeiro o povo de Israel e depois a Igreja assumiram como mediação privilegiada da relação com o único Deus e resposta adequada ao seu revelar-se na história. Enquanto orações, os Salmos constituem manifestações da alma e da fé, em que todos se podem reconhecer e nos quais se comunica aquela experiência de particular proximidade de Deus, à qual cada homem é chamado. E é toda a complexidade do existir humano que se concentra na complexidade das diversas formas literárias dos vários Salmos: hinos, lamentações, súplicas individuais e comunitárias, cânticos de acção de graças, Salmos sapienciais e outros géneros que se podem encontrar nestas composições poéticas.

Não obstante esta multiplicidade expressiva, podem ser identificados dois grandes âmbitos que resumem a oração do Saltério: a súplica, ligada à lamentação, e o louvor, duas dimensões ligadas entre si e quase inseparáveis. Porque a súplica é animada pela certeza de que Deus responderá, e de que isto abre ao louvor e à acção de graças; e porque o louvor e a acção de graças brotam da experiência de uma salvação recebida, que supõe uma necessidade de ajuda que a súplica exprime.

Na súplica, o orante lamenta-se e descreve a sua situação de angústia, de perigo e de desolação, ou então, como nos Salmos penitenciais, confessa a culpa, o pecado, pedindo para ser perdoado. Ele expõe ao Senhor o seu estado de espírito na confiança de ser ouvido, e isto implica um reconhecimento de Deus como bom, desejoso do bem e «amante da vida» (cf. Sb 11, 26), pronto a ajudar, salvar e perdoar. Por exemplo, assim reza o Salmista, no Salmo 31: «Junto de vós, Senhor, refugio-me. Que eu não seja confundido para sempre [...] Vós livrar-me-eis das ciladas que me armaram, porque sois a minha defesa» (vv. 2.5). Por conseguinte, já na lamentação pode sobressair algo do louvor, que se preanuncia na esperança da intervenção divina e que em seguida se faz explícita, quando a salvação divina se torna realidade. De maneira análoga, nos Salmos de acção de graça e de louvor, fazendo memória do dom recebido contemplando a grandeza da misericórdia de Deus, reconhece-se também a própria insignificância e a necessidade de ser salvo, que se encontra na base da súplica. Confessa-se assim a Deus a própria condição de criatura, inevitavelmente caracterizada pela morte, e no entanto portadora de um desejo radical de vida. Por isso o Salmista exclama, no Salmo 86: «Louvar-vos-ei de todo o coração, Senhor meu Deus, e glorificarei o vosso nome eternamente. Porque a vossa misericórdia foi grande para comigo, e tirastes a minha alma das profundezas da região dos mortos» (vv. 12-13). De tal modo, na oração dos Salmos, súplica e louvor entrelaçam-se e fundam-se num único cântico que celebra a graça eterna do Senhor que se debruça sobre a nossa fragilidade.

Precisamente para permitir que o povo dos fiéis se una a este cântico, o livro do Saltério foi concedido a Israel e à Igreja. Com efeito, os Salmos ensinam a rezar. Neles, a Palavra de Deus transforma-se em palavra de oração — e são as palavras do Salmista inspirado — que se torna também palavra do orante que recita os Salmos. Estas são a beleza e a particularidade deste livro bíblico: as preces nele contidas, diversamente de outras orações que encontramos na Sagrada Escritura, não estão inseridas numa trama narrativa que especifica o seu sentido e a sua função. Os Salmos são dados ao fiel precisamente como texto de oração, que tem como única finalidade tornar-se a oração daqueles que os assumem e com eles se dirigem a Deus. Dado que são uma Palavra de Deus, quem recita os Salmos fala a Deus com as palavras que o próprio Deus nos concedeu, dirige-se a Ele com as palavras que Ele mesmo nos doa. Deste modo, recitando os Salmos aprendemos a rezar. Eles constituem uma escola de oração.

Algo de análogo acontece quando a criança começa a falar, ou seja, a expressar as próprias sensações, emoções e necessidades, com palavras que não lhe pertencem de modo inato, mas que ele aprende dos seus pais e de que vive ao seu redor. Aquilo que a criança quer manifestar é a sua própria vivência, mas o instrumento expressivo pertence a outros; e ele apropria-se do mesmo gradualmente, as palavras recebidas dos pais tornam-se as suas palavras e através destas palavras aprende também um modo de pensar e de sentir, acede a um inteiro mundo de conceitos, e nele cresce, relaciona-se com a realidade, com os homens e com Deus. Finalmente, a língua dos seus pais tornou-se a sua língua, ele fala com palavras recebidas de outros, que já se tornaram as suas palavras. Assim acontece com a oração dos Salmos. Eles são-nos doados para que aprendamos a dirigir-nos a Deus, a comunicarmos com Ele, a falar-lhe de nós com as suas palavras, a encontrar uma linguagem para o encontro com Deus. E, através de tais palavras, será possível também conhecer e aceitar os critérios do seu agir, aproximar-se ao mistério dos seus pensamentos e dos seus caminhos (cf.Is 55, 8-9), de maneira a crescer cada vez mais na fé e no amor. Do mesmo modo como as nossas palavras não são apenas palavras, mas ensinam-nos um mundo real e conceitual, assim também estas preces nos ensinam o Coração de Deus, pelo que não só podemos falar com Deus, mas podemos aprender quem é Deus e, aprendendo a falar com Ele, aprendemos como ser homens, como sermos nós mesmos.

A este propósito, parece significativo o título que a tradição judaica conferiu ao Saltério. Ele chama-se tehillîm, um termo hebraico que quer dizer «louvores», tirada daquela raiz verbal que encontramos na expressão «Halleluyah», isto é, literalmente: «Louvai o Senhor». Por conseguinte, este livro de orações, não obstante seja tão multiforme e complexo, com os seus diversos géneros literários e com a sua articulação entre louvor e súplica, é em última análise um livro de louvores, que ensina a dar graças, a celebrar a grandeza do dom de Deus, a reconhecer a beleza das suas obras e a glorificar o seu Nome santo. Esta é a resposta mais adequada diante do manifestar-se do Senhor e da experiência da sua bondade. Ensinando-nos a rezar, os Salmos ensinam-nos que também na desolação, inclusive na dor, a presença de Deus é uma fonte de maravilha e de consolação; pode-se chorar, suplicar, interceder e lamentar-se, mas com a consciência de que estamos a caminhar rumo à luz, onde o louvor poderá ser definitivo. Como nos ensina o Salmo 36: «Em vós está a fonte da vida, e é na vossa luz que vemos a luz!» (Sl 36, 10).

Mas além deste título geral do livro, a tradição judaica atribuiu a muitos Salmos alguns títulos específicos, conferindo-os em grande maioria ao rei David. Figura de notável importância humana e teológica, David é uma personagem complexa, que atravessou as mais diversificadas experiências fundamentais do viver. Jovem pastor do rebanho paterno, passando pelas vicissitudes alternadas e por vezes dramáticas, torna-se rei de Israel, pastor do povo de Deus. Homem de paz, combateu muitas guerras; incansável e tenaz investigador de Deus, traiu o seu Amor, e isto é característico: permaneceu sempre investigador de Deus, não obstante tenha pecado muitas vezes gravemente; penitente humilde, recebeu o perdão divino, mas também a pena divina, e aceitou um destino marcado pela dor. Assim, David foi um rei, com todas as suas debilidades, «segundo o Coração de Deus» (cf. 1 Sm 13, 14), ou seja, um orante apaixonado, um homem que sabia o que quer dizer suplicar e louvar. Por conseguinte, a ligação dos Salmos a este insigne rei de Israel é importante, porque ele é uma figura messiânica, Ungido do Senhor, no qual é de certa maneira ofuscado o mistério de Cristo.

Igualmente importantes e significativos são o modo e a frequência com que as palavras dos Salmos são retomadas pelo Novo Testamento, assumindo e sublinhando aquele valor profético sugerido pela ligação do Saltério à figura messiânica de David. No Senhor Jesus, que na sua vida terrena recitou com os Salmos, eles encontram o seu cumprimento definitivo e revelam o seu sentido mais pleno e profundo. As orações do Saltério, com as quais se fala a Deus, falam-nos dele, falam-nos do Filho, imagem do Deus invisível (cf. Cl 1, 15), que nos revela completamente o Rosto do Pai. Portanto o cristão, recitando os Salmos, reza o Pai em Cristo e com Cristo, assumindo aqueles cânticos numa nova perspectiva, que tem no mistério pascal a sua última chave interpretativa. O horizonte do orante abre-se assim a realidades inesperadas, e cada Salmo adquire uma nova luz em Jesus Cristo, e o Saltério pode resplandecer em toda a sua riqueza infinita.

Caríssimos irmãos e irmãs, tomemos portanto na nossa mão este livro santo, deixemo-nos ensinar por Deus a dirigir-nos a Ele, façamos do Saltério uma guia que nos ajude e nos acompanhe quotidianamente no caminho da oração. E perguntemos também nós, como os discípulos de Jesus: «Senhor, ensinai-nos a rezar!» (Lc 11, 1), abrindo o coração para receber a oração do Mestre, em que todas as preces hão-de chegar ao seu cumprimento. Deste modo, tornando-nos filhos no Filho, poderemos falar a Deus, chamando-lhe «Pai Nosso». Obrigado!

PAPA BENTO XVI
Praça de São Pedro
Quarta-feira, 22 de Junho de 2011
[Vídeo] 


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