07 agosto 2012

Ciência e fé: mal-entendidos


Num dia desses tirei um tempinho para assistir a alguns vídeos no YouTube com discussões sobre filosofia, ciência e , bem como sobre criacionismo e evolucionismo. Fiquei impressionado com os mal-entendidos e conceitos truncados, imprecisos e incompletos, além de puros e simples preconceitos! Não é à toa que muitos pensam que fé e ciência sejam incompatíveis! Com determinadas visões de ciência e certas visões de fé, não é para menos!

Resumidamente, como este espaço permite, é preciso que se compreenda o seguinte: (1) Não há contraposição entre criacionismo e evolucionismo do ponto de vista bíblico. (2) Desde os anos 50 do século passado a Igreja tem deixado claro que as narrativas bíblicas da criação pertencem a um gênero literário poético: Deus criou tudo, tudo é bom, tudo foi tirado do nada para a glória de Deus, a misteriosa realidade do mal é fruto de um não a Deus dado pela criatura, o homem é imagem de Deus, tudo caminha para Deus. É isto que os relatos da criação desejam ensinar. (3) Há um tremendo mal-entendido de muitos cientistas sobre o que significa a palavra Deus bem como sobre o Seu modo de agir!

Deus não é um ser entre outros, que possa ser apreendido, descrito, "quantificável". Ele é o Ser; rigorosamente falando, Ele não existe; Ele É! É presente no mais íntimo da menor e mais fugaz partícula subatômica e envolve o universo todo (ou milhares de outros que possam existir, segundo a imaginação mais fantasiosa que real de alguns astrofísicos...): Ele é o mais Além e o mais Aquém de tudo! Sobre Deus, a ciência não tem nada a dizer, simplesmente porque Ele escapa totalmente ao seu campo de estudo e competência. Fico impressionando quando vejo cientistas que, falando de Deus, de repente extrapolam seu campo e tornam-se filósofos ou teólogos de má qualidade...

Outro mal-entendido: o modo de pensar a ação de Deus no mundo. Dou alguns exemplos: se é a liberdade humana quem age, então não é Deus; se é Deus, então não é a liberdade. Assim, para libertar o homem, é necessário eliminar Deus. Outro exemplo: se se consegue explicar os dinamismos da matéria, da energia, a evolução do universo e a evolução dos seres vivos, então Deus não existe... Aí aparecem com toda força a compreensão tortíssima de quem é Deus e da qualidade da Sua ação! Exatamente porque Deus não é um ser entre os seres, mas é o Ser que cria soberanamente e sustenta continuamente tudo no ser, Sua ação criadora é contínua e total e não vem de fora para dentro do mundo criado, mas age no íntimo mesmo da matéria e da vida. Assim, uma flor se abre porque Deus continua criando, uma estrela explode porque Deus continua agindo, o vento sopra porque Deus continua Sua obra! Mas, e as leias da natureza? São obra contínua de Deus, que é amorosamente fiel à Sua criação! A evolução mesma é obra da contínua e perene ação de Deus, que tudo dirige, governa e conduz segundo Sua misteriosa sabedoria, que nos ultrapassa!

Então, isto significa que não se pode perceber os rastros de Deus na Criação? Pode-se sim! (1) O próprio fato de existir o ser e não o nada, grita pela questão: donde vem tudo? Quem deu a tudo o ser e a consistência? E esta incrível ordem, mesmo em áreas de aparente desordem? Como do nada pôde surgir tudo? Nenhum cientista tem uma resposta científica para tais questões. Os que se metem a respondê-las extrapolam o método científico e começam a fazer filosofia, na maioria das vezes, de má qualidade...

(2) Se pensarmos bem, olhando a criação e a inteligência e o coração humanos, temos que nos perguntar por uma Inteligência infinita, que nos ultrapassa totalmente e tudo criou para Si! O mal é querer medir Deus por nós, engaiolando-O no nosso estreito limite! (3) Mas, tem mais: quantas vezes diante da beleza da criação e da vida com seus acontecimentos, temos a intuição fortíssima da existência e da presença desse Criador amoroso, verdadeiro poeta? Reduzir o conhecimento humano ao racional é ridiculamente desumano! Até mesmo descobertas científicas são realizadas, às vezes, seguindo-se a intuição... E é bom ter bem presente que no caso da persistente intuição que o coração e a inteligência humana têm da existência de Deus, não se trata de um tema periférico da vida, mas do fundamento mesmo da existência. Trata-se de uma intuição que poderíamos chamar de arquetípica, ponto de o homem não conseguir jamais escapar da noção de Deus – a não ser para cair na noção de deuses falsos, verdadeiras armadilhas que tiranizam e desfiguram o homem!

(4) E o mais que tudo: a tremenda e perturbadora questão do Sentido! Por que e para que tudo existe? E eu, com meus sonhos e desejos infinitos? E a inteligência e consciência do ser humano? Não será a neurociência ou qualquer outro ramo da ciência que poderá responder a este tipo de perguntas. Aqui entra a filosofia e, em última análise, a religião!

A discussão entre fé e razão, entre ciência e religião sempre foi muito problemática devido às intolerâncias e preconceitos de ambas as partes. Atualmente, pelo menos na nossa cultura ocidental, o grande preconceito e intolerância parte, sobretudo, da visão estreita de alguns cientistas. Seria preciso humildade para escutar o outro, para perceber os vários campos de abordagem da realidade, aceitando os limites do seu próprio campo de estudo. Se se levasse isso em conta, haveria bem menos mal-entendidos e bem menos bobagem nas opiniões sobre o tema...


03 agosto 2012

Papa Bento XVI concluiu o seu terceiro volume sobre Jesus de Nazaré, dedicado aos Evangelhos da infância

2012-08-02 Rádio Vaticana
Cidade do Vaticano (RV) - Bento XVI concluiu o livro sobre a infância de Jesus: foi o que anunciou o Cardeal Secretário de Estado, Tarcisio Bertone, nesta quarta-feira, em Valle d'Aosta – noroeste da Itália –, onde está transcorrendo um período de repouso.

E na manhã desta quinta-feira a Sala de Imprensa da Santa Sé precisou que agora "estão sendo feitas as traduções para as diversas línguas, a partir do texto original escrito em alemão". O purpurado falou também sobre uma nova Carta encíclica.
Portanto, o Papa concluiu o seu terceiro volume sobre Jesus de Nazaré, dedicado aos Evangelhos da infância: segundo o Cardeal Bertone é um grande presente para o Ano da Fé, que se iniciará em outubro próximo. Leremos o livro com grande expectativa e muito gosto – afirmou.

Por sua vez, a Sala de Imprensa da Santa Sé faz votos de que a publicação do livro "se dê simultaneamente nas línguas de maior difusão", bem sabendo que para isso será necessário "um côngruo espaço de tempo para uma tradução precisa de um texto importante e esperado".

Ademais, talvez tenhamos uma nova encíclica – acrescentou o Cardeal Bertone –, a quarta do Pontificado após a Deus caritas est de 2005, a Spe salvi de 2007, e a Caritas in veritate de 2009.

À margem de uma missa celebrada na igreja paroquial da localidade de Introd, no Valle d'Aosta, o Secretário de Estado vaticano disse, inda, que nesse período de repouso está revendo documentos, anotações e problemas que precisam ser colocados em ordem, naturalmente sempre em contato com Roma, quer com os seus colaboradores, quer com o Papa.

O Papa Bento XVI e a Nova Evangelização

Na homilia, recordando a memória litúrgica de Santo Eusébio de Vercelli – celebrada neste 2 de agosto –, destacou a obra de evangelização feita pelo bispo, que "não ficou em sua casa". "Para levar o Evangelho e a salvação de Cristo a todos os lugares, enfrentou viagens duríssimas, perigos, incompreensões e perseguições dos inimigos".

"Quando se fala em 'nova evangelização' – observou o Cardeal Bertone – devemos saber reconhecer nessa expressão toda a confiança que Deus deposita em nós hoje, no querer-nos anunciadores do Evangelho no meio de nosso povo, tanto quanto os primeiros discípulos entre os pagãos de seu tempo.

"Em todo âmbito social: no trabalho, no matrimônio e na família, como em todos os grupos de amigos e de engajamento social, cada um é realmente imprescindível para uma ramificação do testemunho de fé", exortou o purpurado.

Nesse contexto, "então compreendemos a grande importância do anúncio feito por Bento XVI de proclamar o Ano da Fé, que terá início em outubro próximo, à distância de 50 anos da abertura do Concílio Ecumênico Vaticano II."

"Será um ano importante, basta pensar na necessidade do nosso tempo de servir à causa do homem" que, segundo Bento XVI, sem Deus "não sabe para onde ir e nem mesmo consegue compreender que ele é".

"Conscientes da nossa dignidade de colaboradores ou de agentes de uma 'nova evangelização', devemos cultivar uma grande paixão por Deus, em primeiro lugar."

"Mas devemos também esforçar-nos de muitos modos para descobrirmos novamente, mediante uma formação realmente cristã, os muitos tesouros da nossa cultura e da fé que muitos perderam de vista e que, por isso mesmo, se tornaram quase irreconhecíveis" – concluiu o Cardeal Bertone. (RL)

01 agosto 2012

Bento XVI e a coragem de se abrir à amplidão da razão

Se Jesus se torna um caso

Acaba de ser publicado o livro Ampliare l'orizzonte della ragione. Per una lettura de Joseph Ratzinger – Benedetto XVI (Città del Vaticano, Libreria Editrice Vaticana, 2012, 77 páginas, 12 euros) do arcebispo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Publicamos excertos de um dos capítulos que contém o texto da relação feita no congresso «Dal lògos dei Greci e dei Romani al Lògos di Dio. Ricordando Marta Sordi» (Milano, Università Cattolica del Sacro Cuore, 13 novembre 2011).


Na lição em Regensburg Bento XVI ressaltou de novo a síntese de fé e razão e de liberdade e amor. Quatro conceitos que hoje um mundo secularizado gostaria de reclamar para si, sem reconhecer ao mesmo tempo à Igreja o direito de se apresentar como fonte de uma vida sensata da sociedade. Quem não crê em Cristo como único mediador de salvação, orgulha-se da própria abertura mental e capacidade de tolerância, acusando a Igreja de constrangimento das consciências e de imperialismo espiritual. Mas esta tolerância elevada a absoluto numa visão pluralista do mundo, falta quando se trata do cristianismo e da sua escolha de fé.


O relativismo aplicado à verdade não é só um raciocínio filosófico, mas desemboca inevitavelmente na intolerância em relação a Deus. Os enunciados principais sobre Deus, Jesus Cristo, a Igreja, no máximo são considerados como subcultura de um agrupamento religiosamente motivado. Deus torna-se um «ideal», que se deve usar para a edificação ou para a doutrinação dos homens. Jesus Cristo torna-se um «caso» particularmente adequado para servir como modelo para a moral da sociedade, e a Igreja é uma união livre (como a associação) de pessoas com as mesmas opiniões subjectivas em matéria de religião.

A nossa profissão de fé contém já o gérmen de um encontro com Deus orientado segundo a razão humana. Razão, racionalidade não são conceitos incompatíveis com a fé, mesmo se esta é a reprovação constante. Nós, como seres racionais, somos concebidos de tal modo que não escondemos Deus perante a razão. O mundo precisa de uma razão que não seja surda em relação ao divino. O Lógos divino assumiu a natureza humana em Jesus Cristo. Esta é a fé que a razão ensina a compreender, esta é a razão que chega à fé, esta é a liberdade que age segundo consciência.
Gerhard Ludwig Müller

O direito segundo Bento XVI: A razão é de todos




O cristianismo nunca impôs ao Estado e à sociedade um direito revelado

Com frequência o Papa Bento XVI se ocupa do conceito de direito ao tratar de outros temas ou ao enfrentar do próprio direito só aspectos particulares, como no Discurso pronunciado no Bundestag, a 22 de Setembro de 2011, no qual o Pontífice analisou esse tema de modo exclusivo e, podemos dizer, com fervor.
O Papa recorda que: «o cristianismo nunca impôs ao Estado e à sociedade um direito revelado, um ordenamento jurídico derivante de uma revelação». Retomando o exemplo acima utilizado, a religião católica nunca teria imposto, ao Estado ou à sociedade, o direito do embrião a receber o respeito pela sua existência.

O instrumento cognoscitivo, caso seja uma religião que declara a ontologia, é, e não pode deixar de ser a fé de um sujeito, ou melhor, a adesão por fé de um sujeito à autoridade da religião que certifica a ontologia. O próprio Papa o revela com esta significativa expressão: «foi decisivo o facto de que os teólogos cristãos tenham tomado posição contra o direito religioso, exigido pela fé na divindade». Portanto: «exigido pela fé na divindade».

As verdadeiras fontes do direito

Ora, a fé e a adesão por fé não pertencem necessariamente a cada sujeito na comunidade civil. Nem sequer ao legislador, isto é, a cada uma das pessoas que compõem o conjunto legiferante. O que acabámos de afirmar é uma consequência imediata do princípio da liberdade religiosa e, portanto, da liberdade de consciência. Pelos motivos supramencionados, para conhecer e afirmar o direito ontológico é preciso seguir outros caminhos, outros instrumentos cognoscitivos. Neste ponto o Papa remete para «natureza e razão», «harmonia entre razão objectiva e subjectiva» e qualifica tais elementos como «verdadeiras fontes do direito». Isto significa que a razão deve indagar a natureza para encontrar o direito ontológico.

A este ponto é decisivo realçar que a razão representa o instrumento cognoscitivo adequado não só porque, como é óbvio, é capaz de indagar a natureza e assim conhecer a ontologia, mas também porque, diversamente da adesão por fé, que pertence só a alguns, a razão é de todos.

Francesco Coccopalmerio, cardeal presidente do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos

16 julho 2012

O homem em oração (8): A leitura da Bíblia, alimento para o espírito




A leitura da Bíblia, alimento para o espírito

Estimados irmãos e irmãs!
Estou muito feliz por vos encontrar aqui na praça em Castel Gandolfo e por retomar as audiências, interrompidas no mês de Julho. Gostaria de continuar o tema ao qual tínhamos dado início, ou seja, uma «escola de oração», e também hoje, de uma maneira um pouco diversificada, sem me afastar desta temática, referir-me a alguns aspectos de índole espiritual e concreta, que parecem úteis não apenas para quem vive — numa região do mundo — a temporada das férias de Verão, como nós, mas inclusive para todos aqueles que estão comprometidos no trabalho diário.

Quando temos um momento de pausa nas nossas actividades, de modo especial durante as férias, muitas vezes pegamos num livro, que desejamos ler. É precisamente este o primeiro aspecto, sobre o qual hoje gostaria de meditar. Cada um de nós tem necessidade de momentos e de espaços de recolhimento, de meditação e de calma... Graças a Deus é assim! Com efeito, esta exigência diz-nos que não fomos feitos apenas para trabalhar, mas também para pensar, ponderar, ou simplesmente para acompanhar com a mente e o coração uma narração, uma história com a qual nos identificarmos, num certo sentido, «perder-nos», para depois nos encontrarmos enriquecidos.

Naturalmente, muitos destes livros de leitura, que temos nas nossas mãos durante as férias, são sobretudo de evasão, e isto é normal. Todavia, várias pessoas, especialmente se podem contar com espaços de pausa e de descanso mais prolongados, dedicam-se à leitura de algo mais comprometedor. Então, gostaria de lançar uma proposta: por que deixar de descobrir alguns livros da Bíblia, que normalmente não são conhecidos? Ou dos quais, talvez, ouvimos alguns trechos durante a Liturgia, mas que nunca lemos na íntegra? Com efeito, muitos cristãos já não lêem a Bíblia, e têm um seu conhecimento muito limitado e superficial. A Bíblia — como diz o nome — é uma colectânea de livros, uma pequena «biblioteca», nascida ao longo de um milénio. Alguns destes «livrinhos» que a compõem permanecem quase desconhecidos para a maior parte das pessoas, inclusive de bons cristãos. Alguns são muito breves, como o Livro de Tobias, uma narração que contém um sentido muito elevado da família e do matrimónio; ou o Livro de Ester, em que a rainha judia, com a fé e a oração, salva o seu povo do extermínio; ou ainda mais breve, o Livro de Rute, uma estrangeira que conhece Deus e experimenta a sua Providência. Estes pequenos livros podem ser lidos inteiramente numa hora. Mais exigentes, e autênticas obras-primas, são o Livro de Job, que enfrenta o grande problema da dor inocente; o Qoelet, que impressiona pela modernidade desconcertante com que põe em discussão o sentido da vida e do mundo; o Cântico dos Cânticos, maravilhoso poema simbólico do amor humano. Come vedes, são todos livros do Antigo Testamento. E o Novo? Sem dúvida, o Novo Testamento é mais conhecido, e os seus géneros literários são menos diversificados. Porém, a beleza da leitura integral do Evangelho deve ser descoberta, assim como recomendo os Actos dos Apóstolos, ou uma das Cartas.

Caros amigos, para concluir, hoje gostaria de sugerir que conserveis ao vosso alcance, durante a temporada de Verão, ou nos momentos de pausa, a Bíblia Sagrada, para a saborear de modo novo, lendo inteiramente alguns dos seus livros, aqueles menos conhecidos e também os mais famosos, como os Evangelhos, mas numa leitura contínua. Assim, os momentos de descanso podem tornar-se, além de um enriquecimento cultural, inclusive um alimento para o espírito, capaz de nutrir o conhecimento de Deus e o diálogo com Ele, a oração. E esta parece ser uma bonita ocupação para as férias: pegar num livro da Bíblia, gozar assim de um pouco de descanso e, ao mesmo tempo, entrar no grande espaço da Palavra de Deus e aprofundar o nosso contacto com o Eterno, precisamente como finalidade do tempo livre que o Senhor nos concede.

 PAPA BENTO XVI
Castel Gandolfo
Quarta-feira, 3 de Agosto de 2011


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O homem em oração (7): O povo de Deus que reza: os Salmos

Queridos irmãos e irmãs

Nas catequeses precedentes, (1, 2, 3, 4, 5, 6) reflectimos sobre algumas figuras do Antigo Testamento particularmente significativas para a nossa meditação sobre a oração. Falei a respeito de Abraão, que intercede pelas cidades estrangeirasacerca de Jacob, que na luta nocturna recebe a bênçãode Moisés, que invoca o perdão para o seu povo; e sobre Elias, que reza pela conversão de Israel. Com a catequese de hoje, gostaria de começar um novo trecho do percurso: em vez de comentar episódios particulares de personagens em oração, entraremos no «livro de oração» por excelência, o livro dos Salmos. Nas próximas catequeses leremos e meditaremos sobre alguns dos Salmos mais bonitos e mais queridos à tradição orante da Igreja. Hoje, gostaria de os introduzir, falando sobre o livro dosSalmos no seu conjunto.

O Saltério apresenta-se como um «formulário» de orações, uma colectânea de cento e cinquenta Salmos, que a tradição bíblica oferece ao povo dos fiéis para que se tornem a sua, a nossa oração, o nosso modo de nos dirigirmos a Deus e de nos relacionarmos com Ele. Neste livro, encontra expressão toda a experiência humana, com os seus múltiplos aspectos, bem como toda a gama de sentimentos que acompanham a existência do homem. Nos Salmos entrelaçam-se e exprimem-se alegria e sofrimento, desejo de Deus e percepção da própria indignidade, felicidade e sentido de abandono, confiança em Deus e solidão dolorosa, plenitude de vida e medo de morrer. Toda a realidade do crente conflui nestas orações, que primeiro o povo de Israel e depois a Igreja assumiram como mediação privilegiada da relação com o único Deus e resposta adequada ao seu revelar-se na história. Enquanto orações, os Salmos constituem manifestações da alma e da fé, em que todos se podem reconhecer e nos quais se comunica aquela experiência de particular proximidade de Deus, à qual cada homem é chamado. E é toda a complexidade do existir humano que se concentra na complexidade das diversas formas literárias dos vários Salmos: hinos, lamentações, súplicas individuais e comunitárias, cânticos de acção de graças, Salmos sapienciais e outros géneros que se podem encontrar nestas composições poéticas.

Não obstante esta multiplicidade expressiva, podem ser identificados dois grandes âmbitos que resumem a oração do Saltério: a súplica, ligada à lamentação, e o louvor, duas dimensões ligadas entre si e quase inseparáveis. Porque a súplica é animada pela certeza de que Deus responderá, e de que isto abre ao louvor e à acção de graças; e porque o louvor e a acção de graças brotam da experiência de uma salvação recebida, que supõe uma necessidade de ajuda que a súplica exprime.

Na súplica, o orante lamenta-se e descreve a sua situação de angústia, de perigo e de desolação, ou então, como nos Salmos penitenciais, confessa a culpa, o pecado, pedindo para ser perdoado. Ele expõe ao Senhor o seu estado de espírito na confiança de ser ouvido, e isto implica um reconhecimento de Deus como bom, desejoso do bem e «amante da vida» (cf. Sb 11, 26), pronto a ajudar, salvar e perdoar. Por exemplo, assim reza o Salmista, no Salmo 31: «Junto de vós, Senhor, refugio-me. Que eu não seja confundido para sempre [...] Vós livrar-me-eis das ciladas que me armaram, porque sois a minha defesa» (vv. 2.5). Por conseguinte, já na lamentação pode sobressair algo do louvor, que se preanuncia na esperança da intervenção divina e que em seguida se faz explícita, quando a salvação divina se torna realidade. De maneira análoga, nos Salmos de acção de graça e de louvor, fazendo memória do dom recebido contemplando a grandeza da misericórdia de Deus, reconhece-se também a própria insignificância e a necessidade de ser salvo, que se encontra na base da súplica. Confessa-se assim a Deus a própria condição de criatura, inevitavelmente caracterizada pela morte, e no entanto portadora de um desejo radical de vida. Por isso o Salmista exclama, no Salmo 86: «Louvar-vos-ei de todo o coração, Senhor meu Deus, e glorificarei o vosso nome eternamente. Porque a vossa misericórdia foi grande para comigo, e tirastes a minha alma das profundezas da região dos mortos» (vv. 12-13). De tal modo, na oração dos Salmos, súplica e louvor entrelaçam-se e fundam-se num único cântico que celebra a graça eterna do Senhor que se debruça sobre a nossa fragilidade.

Precisamente para permitir que o povo dos fiéis se una a este cântico, o livro do Saltério foi concedido a Israel e à Igreja. Com efeito, os Salmos ensinam a rezar. Neles, a Palavra de Deus transforma-se em palavra de oração — e são as palavras do Salmista inspirado — que se torna também palavra do orante que recita os Salmos. Estas são a beleza e a particularidade deste livro bíblico: as preces nele contidas, diversamente de outras orações que encontramos na Sagrada Escritura, não estão inseridas numa trama narrativa que especifica o seu sentido e a sua função. Os Salmos são dados ao fiel precisamente como texto de oração, que tem como única finalidade tornar-se a oração daqueles que os assumem e com eles se dirigem a Deus. Dado que são uma Palavra de Deus, quem recita os Salmos fala a Deus com as palavras que o próprio Deus nos concedeu, dirige-se a Ele com as palavras que Ele mesmo nos doa. Deste modo, recitando os Salmos aprendemos a rezar. Eles constituem uma escola de oração.

Algo de análogo acontece quando a criança começa a falar, ou seja, a expressar as próprias sensações, emoções e necessidades, com palavras que não lhe pertencem de modo inato, mas que ele aprende dos seus pais e de que vive ao seu redor. Aquilo que a criança quer manifestar é a sua própria vivência, mas o instrumento expressivo pertence a outros; e ele apropria-se do mesmo gradualmente, as palavras recebidas dos pais tornam-se as suas palavras e através destas palavras aprende também um modo de pensar e de sentir, acede a um inteiro mundo de conceitos, e nele cresce, relaciona-se com a realidade, com os homens e com Deus. Finalmente, a língua dos seus pais tornou-se a sua língua, ele fala com palavras recebidas de outros, que já se tornaram as suas palavras. Assim acontece com a oração dos Salmos. Eles são-nos doados para que aprendamos a dirigir-nos a Deus, a comunicarmos com Ele, a falar-lhe de nós com as suas palavras, a encontrar uma linguagem para o encontro com Deus. E, através de tais palavras, será possível também conhecer e aceitar os critérios do seu agir, aproximar-se ao mistério dos seus pensamentos e dos seus caminhos (cf.Is 55, 8-9), de maneira a crescer cada vez mais na fé e no amor. Do mesmo modo como as nossas palavras não são apenas palavras, mas ensinam-nos um mundo real e conceitual, assim também estas preces nos ensinam o Coração de Deus, pelo que não só podemos falar com Deus, mas podemos aprender quem é Deus e, aprendendo a falar com Ele, aprendemos como ser homens, como sermos nós mesmos.

A este propósito, parece significativo o título que a tradição judaica conferiu ao Saltério. Ele chama-se tehillîm, um termo hebraico que quer dizer «louvores», tirada daquela raiz verbal que encontramos na expressão «Halleluyah», isto é, literalmente: «Louvai o Senhor». Por conseguinte, este livro de orações, não obstante seja tão multiforme e complexo, com os seus diversos géneros literários e com a sua articulação entre louvor e súplica, é em última análise um livro de louvores, que ensina a dar graças, a celebrar a grandeza do dom de Deus, a reconhecer a beleza das suas obras e a glorificar o seu Nome santo. Esta é a resposta mais adequada diante do manifestar-se do Senhor e da experiência da sua bondade. Ensinando-nos a rezar, os Salmos ensinam-nos que também na desolação, inclusive na dor, a presença de Deus é uma fonte de maravilha e de consolação; pode-se chorar, suplicar, interceder e lamentar-se, mas com a consciência de que estamos a caminhar rumo à luz, onde o louvor poderá ser definitivo. Como nos ensina o Salmo 36: «Em vós está a fonte da vida, e é na vossa luz que vemos a luz!» (Sl 36, 10).

Mas além deste título geral do livro, a tradição judaica atribuiu a muitos Salmos alguns títulos específicos, conferindo-os em grande maioria ao rei David. Figura de notável importância humana e teológica, David é uma personagem complexa, que atravessou as mais diversificadas experiências fundamentais do viver. Jovem pastor do rebanho paterno, passando pelas vicissitudes alternadas e por vezes dramáticas, torna-se rei de Israel, pastor do povo de Deus. Homem de paz, combateu muitas guerras; incansável e tenaz investigador de Deus, traiu o seu Amor, e isto é característico: permaneceu sempre investigador de Deus, não obstante tenha pecado muitas vezes gravemente; penitente humilde, recebeu o perdão divino, mas também a pena divina, e aceitou um destino marcado pela dor. Assim, David foi um rei, com todas as suas debilidades, «segundo o Coração de Deus» (cf. 1 Sm 13, 14), ou seja, um orante apaixonado, um homem que sabia o que quer dizer suplicar e louvar. Por conseguinte, a ligação dos Salmos a este insigne rei de Israel é importante, porque ele é uma figura messiânica, Ungido do Senhor, no qual é de certa maneira ofuscado o mistério de Cristo.

Igualmente importantes e significativos são o modo e a frequência com que as palavras dos Salmos são retomadas pelo Novo Testamento, assumindo e sublinhando aquele valor profético sugerido pela ligação do Saltério à figura messiânica de David. No Senhor Jesus, que na sua vida terrena recitou com os Salmos, eles encontram o seu cumprimento definitivo e revelam o seu sentido mais pleno e profundo. As orações do Saltério, com as quais se fala a Deus, falam-nos dele, falam-nos do Filho, imagem do Deus invisível (cf. Cl 1, 15), que nos revela completamente o Rosto do Pai. Portanto o cristão, recitando os Salmos, reza o Pai em Cristo e com Cristo, assumindo aqueles cânticos numa nova perspectiva, que tem no mistério pascal a sua última chave interpretativa. O horizonte do orante abre-se assim a realidades inesperadas, e cada Salmo adquire uma nova luz em Jesus Cristo, e o Saltério pode resplandecer em toda a sua riqueza infinita.

Caríssimos irmãos e irmãs, tomemos portanto na nossa mão este livro santo, deixemo-nos ensinar por Deus a dirigir-nos a Ele, façamos do Saltério uma guia que nos ajude e nos acompanhe quotidianamente no caminho da oração. E perguntemos também nós, como os discípulos de Jesus: «Senhor, ensinai-nos a rezar!» (Lc 11, 1), abrindo o coração para receber a oração do Mestre, em que todas as preces hão-de chegar ao seu cumprimento. Deste modo, tornando-nos filhos no Filho, poderemos falar a Deus, chamando-lhe «Pai Nosso». Obrigado!

PAPA BENTO XVI
Praça de São Pedro
Quarta-feira, 22 de Junho de 2011
[Vídeo] 


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26 fevereiro 2012

Deus não é para o bico da ciência

Henrique Raposo (www.expresso.pt)
8:00 Sexta feira, 24 de fevereiro de 2012

Antony Flew (1923-2010) não foi um ateu de garagem. Flew foi o Dawkins do século XX, o líder do ateísmo que se julgava legitimado pela ciência. É por isso que a sua conversão foi um acontecimento tão polémico. Deus existe é a explicação dessa polémica descoberta. O grande motor da mudança? A teoria do Big Bang. Steiner diz, algures em Gramáticas da Criação, que a teoria do Big Bang é a tradução científica do livro do Génesis. Flew navegou por águas similares. Para este filósofo britânico, a teoria do Big Bang fornece a prova científica para aquilo que São Tomás de Aquino considerava inacessível ao conceito de prova: o começo do universo. Enquanto pensou que o universo era apenas um espaço ilimitado mas atemporal (sem um começo), Flew encarou o dito universo como um conjunto de factos fechado e à mercê de uma ciência toda-poderosa. Mas tudo mudou com o Big Bang. Se o universo teve um começo, então, a pergunta é inevitável: o que produziu esse começo? Quem deu o primeiro pontapé na bola cósmica?

O que torna Flew num caso subversivo para o ateísmo hegemónico não é a mera conversão à ideia de Deus. A subversão está na forma, porque Flew chegou a Deus através da ciência, e não através da fé. Flew atingiu Deus através da física e da cosmologia. O ex-papa dos ateus pegou nos dados científicos, e Eureka: há um Deus subjacente à racionalidade da natureza e do universo. Tudo bem? Tudo mal. Deus não é um assunto científico. Deus não se prova ou desprova cientificamente. Deus é um salto de fé abraâmico, kierkegaardiano. Se Dawkins está errado, Flew também não está certo.

Sim, Dawkins tem direito ao seu ateísmo, mas já não tem direito a pensar que esse ateísmo tem certificado científico. A ciência não prova a não-existência de Deus. Deus é um assunto não-científico por excelência, porque Deus não está ao alcance do método científico. Mais: quando afirma que o seu ateísmo darwinista é a única resposta aceitável, Dawkins deixa de lado qualquer ceticismo em relação à sua própria teoria, acabando por esquecer que a ciência não anda à procura da verdade redentora. Todo o conhecimento científico assenta nesta arquitectura céptica: só podemos ter estabilidades teóricas, e nunca certezas teóricas; todas as teorias têm de ser falsificáveis, logo, todas as teorias são apenas possivelmente verdadeiras. Sem este mar de dúvidas, o espírito científico não sobrevive. Preso na fúria de negar Deus em nome da ciência, Dawkins acaba por desrespeitar a própria ciência.

Ora, se não prova a não-existência de Deus desejada por Dawkins, a ciência também não prova a existência de Deus. Flew diz que esta foi uma peregrinação da razão: "segui a razão até onde ela me levou. E ela levou-me a aceitar a existência de um Ser auto-existente, imutável, imaterial, omnipotente e omnisciente". Problema? Apesar das diferenças a jusante, Flew partilha com Dawkins um erro a montante: encara Deus como um desafio científico. Sucede que Deus e a fé não são assuntos empíricos, não são temas para o bico da ciência. Deus não se esconde na relação gravitacional entre planetas, mas na relação moral entre homens. Deus é um salto de fé ético, e não uma descoberta com tubos de ensaio. Flew percebeu que o ateísmo não era a resposta, mas teve medo de atravessar o deserto.

25 fevereiro 2012

MENSAGEM DE SUA SANTIDADE PAPA BENTO XVI PARA A QUARESMA DE 2012



«Prestemos atenção uns aos outros, para nos estimularmos

ao amor e às boas obras» (Heb 10, 24)


Irmãos e irmãs!
A Quaresma oferece-nos a oportunidade de reflectir mais uma vez sobre o cerne da vida cristã: o amor. Com efeito este é um tempo propício para renovarmos, com a ajuda da Palavra de Deus e dos Sacramentos, o nosso caminho pessoal e comunitário de fé. Trata-se de um percurso marcado pela oração e a partilha, pelo silêncio e o jejum, com a esperança de viver a alegria pascal.

Desejo, este ano, propor alguns pensamentos inspirados num breve texto bíblico tirado da Carta aos Hebreus: «Prestemos atenção uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras» (10, 24). Esta frase aparece inserida numa passagem onde o escritor sagrado exorta a ter confiança em Jesus Cristo como Sumo Sacerdote, que nos obteve o perdão e o acesso a Deus. O fruto do acolhimento de Cristo é uma vida edificada segundo as três virtudes teologais: trata-se de nos aproximarmos do Senhor «com um coração sincero, com a plena segurança da » (v. 22), de conservarmos firmemente «a profissão da nossa esperança» (v. 23), numa solicitude constante por praticar, juntamente com os irmãos, «o amor e as boas obras» (v. 24). Na passagem em questão afirma-se também que é importante, para apoiar esta conduta evangélica, participar nos encontros litúrgicos e na oração da comunidade, com os olhos fixos na meta escatológica: a plena comunhão em Deus (v. 25). Detenho-me no versículo 24, que, em poucas palavras, oferece um ensinamento precioso e sempre actual sobre três aspectos da vida cristã: prestar atenção ao outro, a reciprocidade e a santidade pessoal.

1. «Prestemos atenção»: a responsabilidade pelo irmão.

O primeiro elemento é o convite a «prestar atenção»: o verbo grego usado ékatanoein, que significa observar bem, estar atento, olhar conscienciosamente, dar-se conta de uma realidade. Encontramo-lo no Evangelho, quando Jesus convida os discípulos a «observar» as aves do céu, que não se preocupam com o alimento e todavia são objecto de solícita e cuidadosa Providência divina (cf. Lc 12, 24), e a «dar-se conta» da trave que têm na própria vista antes de reparar no argueiro que está na vista do irmão (cf. Lc 6, 41). Encontramos o referido verbo também noutro trecho da mesma Carta aos Hebreus, quando convida a «considerar Jesus» (3, 1) como o Apóstolo e o Sumo Sacerdote da nossa fé. Por conseguinte o verbo, que aparece na abertura da nossa exortação, convida a fixar o olhar no outro, a começar por Jesus, e a estar atentos uns aos outros, a não se mostrar alheio e indiferente ao destino dos irmãos. Mas, com frequência, prevalece a atitude contrária: a indiferença, o desinteresse, que nascem do egoísmo, mascarado por uma aparência de respeito pela «esfera privada». Também hoje ressoa, com vigor, a voz do Senhor que chama cada um de nós a cuidar do outro. Também hoje Deus nos pede para sermos o «guarda» dos nossos irmãos (cf. Gn 4, 9), para estabelecermos relações caracterizadas por recíproca solicitude, pela atenção aobem do outro e a todo o seu bem. O grande mandamento do amor ao próximo exige e incita a consciência a sentir-se responsável por quem, como eu, é criatura e filho de Deus: o facto de sermos irmãos em humanidade e, em muitos casos, também na fé deve levar-nos a ver no outro um verdadeiro alter ego, infinitamente amado pelo Senhor. Se cultivarmos este olhar de fraternidade, brotarão naturalmente do nosso coração a solidariedade, a justiça, bem como a misericórdia e a compaixão. O Servo de Deus Paulo VI afirmava que o mundo actual sofre sobretudo de falta de fraternidade: «O mundo está doente. O seu mal reside mais na crise de fraternidade entre os homens e entre os povos, do que na esterilização ou no monopólio, que alguns fazem, dos recursos do universo» (Carta enc. Populorum progressio, 66).

A atenção ao outro inclui que se deseje, para ele ou para ela, o bem sob todos os seus aspectos: físico, moral e espiritual. Parece que a cultura contemporânea perdeu o sentido do bem e do mal, sendo necessário reafirmar com vigor que o bem existe e vence, porque Deus é «bom e faz o bem» (Sal 119/118, 68). O bem é aquilo que suscita, protege e promove a vida, a fraternidade e a comunhão. Assim a responsabilidade pelo próximo significa querer e favorecer o bem do outro, desejando que também ele se abra à lógica do bem; interessar-se pelo irmão quer dizer abrir os olhos às suas necessidades. A Sagrada Escritura adverte contra o perigo de ter o coração endurecido por uma espécie de «anestesia espiritual», que nos torna cegos aos sofrimentos alheios. O evangelista Lucas narra duas parábolas de Jesus, nas quais são indicados dois exemplos desta situação que se pode criar no coração do homem. Na parábola do bom Samaritano, o sacerdote e o levita, com indiferença, «passam ao largo» do homem assaltado e espancado pelos salteadores (cf. Lc 10, 30-32), e, na do rico avarento, um homem saciado de bens não se dá conta da condição do pobre Lázaro que morre de fome à sua porta (cf. Lc 16, 19). Em ambos os casos, deparamo-nos com o contrário de «prestar atenção», de olhar com amor e compaixão. O que é que impede este olhar feito de humanidade e de carinho pelo irmão? Com frequência, é a riqueza material e a saciedade, mas pode ser também o antepor a tudo os nossos interesses e preocupações próprias. Sempre devemos ser capazes de «ter misericórdia» por quem sofre; o nosso coração nunca deve estar tão absorvido pelas nossas coisas e problemas que fique surdo ao brado do pobre. Diversamente, a humildade de coração e a experiência pessoal do sofrimento podem, precisamente, revelar-se fonte de um despertar interior para a compaixão e a empatia: «O justo conhece a causa dos pobres, porém o ímpio não o compreende» (Prov 29, 7). Deste modo entende-se a bem-aventurança «dos que choram» (Mt 5, 4), isto é, de quantos são capazes de sair de si mesmos porque se comoveram com o sofrimento alheio. O encontro com o outro e a abertura do coração às suas necessidades são ocasião de salvação e de bem-aventurança.

O facto de «prestar atenção» ao irmão inclui, igualmente, a solicitude pelo seu bem espiritual. E aqui desejo recordar um aspecto da vida cristã que me parece esquecido: a correcção fraterna, tendo em vista a salvação eterna. De forma geral, hoje é-se muito sensível ao tema do cuidado e do amor que visa o bem físico e material dos outros, mas quase não se fala da responsabilidade espiritual pelos irmãos. Na Igreja dos primeiros tempos não era assim, como não o é nas comunidades verdadeiramente maduras na fé, nas quais se tem a peito não só a saúde corporal do irmão, mas também a da sua alma tendo em vista o seu destino derradeiro. Lemos na Sagrada Escritura: «Repreende o sábio e ele te amará. Dá conselhos ao sábio e ele tornar-se-á ainda mais sábio, ensina o justo e ele aumentará o seu saber» (Prov 9, 8-9). O próprio Cristo manda repreender o irmão que cometeu um pecado (cf. Mt 18, 15). O verbo usado para exprimir a correcção fraterna – elenchein – é o mesmo que indica a missão profética, própria dos cristãos, de denunciar uma geração que se faz condescendente com o mal (cf. Ef 5, 11). A tradição da Igreja enumera entre as obras espirituais de misericórdia a de «corrigir os que erram». É importante recuperar esta dimensão do amor cristão. Não devemos ficar calados diante do mal. Penso aqui na atitude daqueles cristãos que preferem, por respeito humano ou mera comodidade, adequar-se à mentalidade comum em vez de alertar os próprios irmãos contra modos de pensar e agir que contradizem a verdade e não seguem o caminho do bem. Entretanto a advertência cristã nunca há-de ser animada por espírito de condenação ou censura; é sempre movida pelo amor e a misericórdia e brota duma verdadeira solicitude pelo bem do irmão. Diz o apóstolo Paulo: «Se porventura um homem for surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi essa pessoa com espírito de mansidão, e tu olha para ti próprio, não estejas também tu a ser tentado» (Gl 6, 1). Neste nosso mundo impregnado de individualismo, é necessário redescobrir a importância da correcção fraterna, para caminharmos juntos para a santidade. É que «sete vezes cai o justo» (Prov 24, 16) – diz a Escritura –, e todos nós somos frágeis e imperfeitos (cf. 1 Jo 1, 8). Por isso, é um grande serviço ajudar, e deixar-se ajudar, a ler com verdade dentro de si mesmo, para melhorar a própria vida e seguir mais rectamente o caminho do Senhor. Há sempre necessidade de um olhar que ama e corrige, que conhece e reconhece, que discerne e perdoa (cf. Lc 22, 61), como fez, e faz, Deus com cada um de nós.

2. «Uns aos outros»: o dom da reciprocidade.

O facto de sermos o «guarda» dos outros contrasta com uma mentalidade que, reduzindo a vida unicamente à dimensão terrena, deixa de a considerar na sua perspectiva escatológica e aceita qualquer opção moral em nome da liberdade individual. Uma sociedade como a actual pode tornar-se surda quer aos sofrimentos físicos, quer às exigências espirituais e morais da vida. Não deve ser assim na comunidade cristã! O apóstolo Paulo convida a procurar o que «leva à paz e à edificação mútua» (Rm 14, 19), favorecendo o «próximo no bem, em ordem à construção da comunidade» (Rm 15, 2), sem buscar «o próprio interesse, mas o do maior número, a fim de que eles sejam salvos» (1 Cor 10, 33). Esta recíproca correcção e exortação, em espírito de humildade e de amor, deve fazer parte da vida da comunidade cristã.

Os discípulos do Senhor, unidos a Cristo através da Eucaristia, vivem numa comunhão que os liga uns aos outros como membros de um só corpo. Isto significa que o outro me pertence: a sua vida, a sua salvação têm a ver com a minha vida e a minha salvação. Tocamos aqui um elemento muito profundo da comunhão: a nossa existência está ligada com a dos outros, quer no bem quer no mal; tanto o pecado como as obras de amor possuem também uma dimensão social. Na Igreja, corpo místico de Cristo, verifica-se esta reciprocidade: a comunidade não cessa de fazer penitência e implorar perdão para os pecados dos seus filhos, mas alegra-se contínua e jubilosamente também com os testemunhos de virtude e de amor que nela se manifestam. Que «os membros tenham a mesma solicitude uns para com os outros» (1 Cor 12, 25) – afirma São Paulo –, porque somos um e o mesmo corpo. O amor pelos irmãos, do qual é expressão a esmola – típica prática quaresmal, juntamente com a oração e o jejum – radica-se nesta pertença comum. Também com a preocupação concreta pelos mais pobres, pode cada cristão expressar a sua participação no único corpo que é a Igreja. E é também atenção aos outros na reciprocidade saber reconhecer o bem que o Senhor faz neles e agradecer com eles pelos prodígios da graça que Deus, bom e omnipotente, continua a realizar nos seus filhos. Quando um cristão vislumbra no outro a acção do Espírito Santo, não pode deixar de se alegrar e dar glória ao Pai celeste (cf. Mt5, 16).

3. «Para nos estimularmos ao amor e às boas obras»: caminhar juntos na santidade.

Esta afirmação da Carta aos Hebreus (10, 24) impele-nos a considerar a vocação universal à santidade como o caminho constante na vida espiritual, a aspirar aos carismas mais elevados e a um amor cada vez mais alto e fecundo (cf. 1 Cor 12, 31 – 13, 13). A atenção recíproca tem como finalidade estimular-se, mutuamente, a um amor efectivo sempre maior, «como a luz da aurora, que cresce até ao romper do dia» (Prov 4, 18), à espera de viver o dia sem ocaso em Deus. O tempo, que nos é concedido na nossa vida, é precioso para descobrir e realizar as boas obras, no amor de Deus. Assim a própria Igreja cresce e se desenvolve para chegar à plena maturidade de Cristo (cf. Ef 4, 13). É nesta perspectiva dinâmica de crescimento que se situa a nossa exortação a estimular-nos reciprocamente para chegar à plenitude do amor e das boas obras.

Infelizmente, está sempre presente a tentação da tibieza, de sufocar o Espírito, da recusa de «pôr a render os talentos» que nos foram dados para bem nosso e dos outros (cf. Mt 25, 24-28). Todos recebemos riquezas espirituais ou materiais úteis para a realização do plano divino, para o bem da Igreja e para a nossa salvação pessoal (cf. Lc 12, 21; 1 Tm 6, 18). Os mestres espirituais lembram que, na vida de fé, quem não avança, recua. Queridos irmãos e irmãs, acolhamos o convite, sempre actual, para tendermos à «medida alta da vida cristã» (João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte, 31). A Igreja, na sua sabedoria, ao reconhecer e proclamar a bem-aventurança e a santidade de alguns cristãos exemplares, tem como finalidade também suscitar o desejo de imitar as suas virtudes. São Paulo exorta: «Adiantai-vos uns aos outros na mútua estima» (Rm 12, 10).

Que todos, à vista de um mundo que exige dos cristãos um renovado testemunho de amor e fidelidade ao Senhor, sintam a urgência de esforçar-se por adiantar no amor, no serviço e nas obras boas (cf. Heb 6, 10). Este apelo ressoa particularmente forte neste tempo santo de preparação para a Páscoa. Com votos de uma Quaresma santa e fecunda, confio-vos à intercessão da Bem-aventurada Virgem Maria e, de coração, concedo a todos a Bênção Apostólica.

Vaticano, 3 de Novembro de 2011

BENEDICTUS PP. XVI

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