11 maio 2010

A crítica de Ratzinguer/Bento XVI tanto ao multiculturalismo como ao niilismo

Por José Manuel Fernandes

Na altura em que Bento XVI foi eleito, em Abril de 2005, previ que "dificilmente" o seu papado seria o de um mero continuador de João Paulo II. Cinco anos depois, e quando se prepara para visitar pela primeira vez Portugal como chefe da Igreja de Roma, é claro para todos que o Papa alemão não procurou ser o que não era - um líder carismático, à imagem do seu antecessor -, antes não descurou a reorganização da Igreja, centrando-a nos combates mais importantes da actual pós-modernidade.

Horas antes de se iniciar o Conclave que o escolheria como sucessor de Pedro, o então cardeal Ratzinger proferiu, como decano do Colégio dos Cardeais, uma homília que se tem vindo a revelar todo um programa. "Possuir uma fé clara, seguir os ensinamentos da Igreja, é classificado com frequência como fundamentalismo", disse então, perante os 115 cardeais eleitores. "Em contrapartida, o relativismo, isto é, o deixar-se levar "para aqui ou para ali por qualquer vento ou doutrina" parece a única atitude aceitável nos tempos que correm. Toma corpo uma ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo e que deixa tudo ao critério do próprio ego e dos seus desejos".

Ao definir o relativismo moderno como o maior adversário contemporâneo do humanismo cristão, lembrou que "ser-se adulto" significa ter uma fé que não segue atrás das ondas das modas de hoje ou das últimas novidades". E por isso, apesar das mudanças que tem vindo a introduzir na Igreja - nomeadamente na dolorosa e delicada frente da denúncia e prevenção dos casos de pedofilia, onde tem sido de uma grande pro-actividade -, Bento XVI nunca se deixou levar pelo vento que, a espaços, foi soprando mais forte em diferentes direcções.

Ora o relativismo moderno não é apenas adversário do humanismo cristão - coloca também enormes desafios ao tipo de sociedades em que vivemos, livres e abertas porque baseadas num contrato de confiança entre todos os cidadãos que partilham um corpo de valores civilizacionais. Tal sucede porque o relativismo moderno dissolve esses valores sem deixar qualquer alternativa no seu lugar.

Quando Bento XVI critica, por exemplo, o niilismo ou o multiculturalismo, fá-lo a partir de um terreno que partilha com todos os que se preocupam com o deslaçamento e a inumanidade prevalecentes em muitos aspectos das sociedades contemporâneas.

O multiculturalismo não é uma forma de tornar as nossas sociedades mais plurais, pois não parte da necessária base comum a qualquer convivialidade, antes do esbatimento dos valores preexistentes. Por isso, ao criar um lugar vazio e sem referências, o multiculturalismo nunca poderá ser um ponto de encontro, antes de desencontros e mal-entendidos. E o niilismo anda naturalmente de braço dado com o multiculturalismo, sobretudo se pensarmos que este corresponde, de acordo com a definição de Leo Strauss, a não querer nada, não valorizar nada.

A crítica de Ratzinguer/Bento XVI tanto ao multiculturalismo como ao niilismo, onde as referências teológicas não impedem o recurso a grandes pensadores da liberdade e das sociedades abertas, como Karl Popper ou Isaiah Berlin, centra-se no que designa como a diminuição da "energia moral" nas nossas sociedades. "A segurança, de que necessitamos como pressuposto da nossa liberdade e da nossa dignidade, não pode vir, em última análise, de sistemas técnicos de controlo, mas apenas da força moral do homem: onde esta faltar, ou não for suficiente, o poder que o homem possui cada vez mais se transformará num poder de destruição", pode ler-se num dos seus textos.

Homem que conheceu, na sua Alemanha, o horror de um despotismo ateu - o nazismo - e que enfrentou, na universidade onde ensinou, os excessos do idealismo político dos anos 60 e 70 - que por vezes desembocaram no terrorismo -, Bento XVI defende que o moralismo político contemporâneo é "um moralismo de sentido errado, porque privado de uma serena racionalidade" e porque coloca com frequência "a utopia política acima da dignidade de cada homem".

Depois da derrota das ideologias que proclamavam a existência de um moralismo político absoluto e insusceptível de contestação, a nova fronteira do debate transferiu-se para estes terrenos que, se muitos proclamam vazios e sem referências, são na realidade um terreno propício às ambições políticas mais desenfreadas. Ambições que, como se viu com o nazismo, como se viu com o comunismo, lidam muito mal com uma qualquer autoridade exterior à área da política e do poder. Do "seu" poder.

Uma forma moderna dessa intolerância é o laicismo radical, "adversarial", isto é, aquela forma de olhar para a separação entre o Estado e a Igreja que não é neutra em relação aos diferentes credos, antes procura ocupar o seu espaço e, por isso, os combate. É um laicismo que, tal como sucedeu durante a I República com a Lei da Separação, não visa separar o que é de César do que é de deus, antes submeter o que é de deus aos desígnios de César.

Naturalmente que a originalidade radical do Cristianismo face a outras religiões monoteístas é incorporar essa separação desde a sua origem e, no caso do catolicismo, de manter um autoridade única, central e separada, capaz de ler os sinais dos tempos sem ser escrava das modas, o que é insuportável para os que cultivam o racionalismo sem concessões. No caso concreto de Bento XVI, as suas encíclicas e a notável lição preparada para ser lida na Universidade de Roma La Sapienza incomodam ainda mais por nelas se defender não só a pacífica coabitação entre fé e razão como - e cito Giorgio Israel, professor de História da Matemática - que "a fé não cresce a partir do ressentimento e da recusa da modernidade". Mais: por se defender que "o perigo do mundo ocidental é que o homem, obcecado pela grandeza do seu saber e do seu poder, esqueça o problema da verdade. E isto significa que a razão, no fim do dia, acabará por vergar-se às pressões dos interesses e do utilitarismo, perdendo a capacidade de reconhecer a verdade como critério único".

Por isso, como notou Ernesto Galli della Loggia no Corriere de la Sera, o gesto dos professores que impediram a ida de Bento XVI à La Sapienza, tal como o dos nossos furiosos "laicos", traduz sobretudo "uma laicidade oportunista, alimentada por um cientismo patético, arrogante na sua radicalidade cega".

O tímido Cardeal Ratzinger, que tímido não deixou de ser depois de ser eleito Papa, não se desviou da linha que, lida à distância, a sua homília pré-conclave traçava. Talvez também por isso, apesar de lidar melhor com as ideias diferentes do que o próprio João Paulo II, não tenha conseguido escapar ao estereótipo que, antes do mais, visa dar dele uma imagem caricatural e preconceituosa. Até porque o que Bento XVI diz incomoda mesmo os teólogos destas "novas" verdades reveladas, pois poucos, num lugar de poder como o dele, diriam humildemente que mesmo um Papa em Roma não existe para "impor a Fé de cima, pois esta é antes do mais um dom da liberdade".

E não há dúvida que é.

Talvez por isso mesmo eu, que não tenho fé, termine lembrando que, pouco tempo antes da morte de João Paulo II, numa conferência na Escola de Cultura Católica de Santa Croce, em Bassano, o ainda cardeal Ratzinger propôs a inversão do axioma dos iluministas de acordo com o qual era possível definir as normas morais essenciais etsi Deus non daretur, como se Deus não existisse, para passar a propor que "mesmo aqueles que não conseguem encontrar o caminho da aceitação de Deus deveriam procurar viver e orientar a sua vida veluti si Deus daretus, como se Deus existisse". Lembrou então que esse fora o conselho de Pascal aos seus amigos não-crentes, considerando que, assim, "ninguém fica limitado na sua liberdade, mas todas as nossas coisas encontram o apoio e o critério de que têm urgente necessidade".

Como alguém que se reconhece nos valores de uma Europa que, como Bento XVI correctamente defende, não é apenas um lugar geográfico mas o produto de uma civilização, e que a matriz dessa civilização é o Cristianismo (sem o qual não teria sido sequer possível o Iluminismo), aceito este desafio. Mais: nesse desafio marco encontro com Bento XVI e com a sua luta civilizacional, que é também minha.

Papa é tímido e um gigante ao nível cultural

ALEXANDRA SERÔDIO

Cardeal patriarca acredita que os cristãos vão ter encontro "muito forte" com Bento XVI num "tempo concreto que não é fácil", mas que o Mundo está a viver.

Esteve na eleição de Bento XVI e assegura que o Papa é um homem tímido e que, por isso, faz um enorme esforço para enfrentar multidões. D. José Policarpo apela à mobilização dos católicos para as cerimónias religiosas e recorda as conversões de jovens durante a visita do último Papa a Portugal. Apaixonado pelo "diálogo entre o rio e a cidade de Lisboa", o Cardeal Patriarca admite que a missa no Terreiro do Paço será um momento único.

Que expectativas tem em relação a esta visita?

O principal é que corra muito bem e estamos a preparar-nos para isso. Espero que, como já aconteceu das outras vezes, o encontro com o Santo Padre seja uma experiência muito forte de pertencer a esta Igreja, num tempo concreto que não é fácil, mas é o que estamos a viver. Não sei se é mais fácil ou mais difícil de passar, é aquele que estamos a viver. E, portanto, será certamente em todos os sítios onde o Santo Padre estiver um encontro muito forte, muito vivo dos cristãos com a figura do Papa.

É a primeira vez que os cristãos portugueses vão estar com este Papa...

O encontro com o Papa, do ponto de vista físico, de comunhão com o Papa, na maior parte da vida dos cristãos é feita espiritualmente. Antigamente até havia o 'slogan' muito engraçado que era 'ir a Roma e não ver o Papa'. De há 50 anos a esta parte, depois do Concílio Vaticano II, os Papas introduziram uma novidade no seu ministério que é viajar. João Paulo II ultrapassou todos os recordes, ele gostava de viajar. Já Paulo VI viajou e este também. Estas viagens permitem às comunidades sentir ao vivo uma dimensão permanente da sua eclesialidade, que é a comunhão com o sucessor de Pedro. E esta é uma componente fundamental do catolicismo, porque a palavra católico significa universal, portanto significa estar em comunhão com todo o Mundo, com todas as Igrejas do Mundo, na mesma fé e no mesmo amor fraterno, e na mesma compreensão fundamental da moral cristã, da existência cristã. Este vínculo de unidade tem um rosto sacramental que é o Papa, como presidente do colégio dos bispos.

É um encontro importante?

Sim. Guardo sempre na minha imagem, até porque estive muito empenhado na organização, aquele belíssimo encontro do Parque Eduardo VII com João Paulo II. É uma coisa que fica gravada. Mesmo tanto tempo depois eu tenho encontrado pessoas... houve conversões. Tenho dois padres na diocese que se converteram nesse dia. Eram jovens, descrentes, converteram-se e foram para o seminário. São óptimos padres, porque se converteram nesse encontro aqui com João Paulo II.

Portugal tem uma ligação muito forte a João Paulo II. Há quem diga que este Papa não tem tanto carisma.

Quando se diz as pessoas, dá a entender que é toda a gente e não é. Essa é uma componente que tem sido transmitida. Desde os finais do século XIX que os Papas têm sido personalidades gigantes e todos diferentes uns dos outros. Aquando da eleição deste Papa, em que estive presente, uma das coisas que corria entre nós era como seria suceder a João Paulo II. Lembro-me de dizer: 'Tirem isso da cabeça. Nós não vamos eleger uma pessoa para suceder ou imitar João Paulo II. Vamos eleger uma pessoa para um tempo novo'. Este papa é diferente, não há dúvida nenhuma. É uma pessoa diferente. Conheço-o há muito tempo. É um tímido, de uma sensibilidade enorme e um gigante do ponto de vista cultural. É das cabeças mais brilhantes do século XXI e, sem dúvida nenhuma, entre os maiores teólogos da história da igreja. Isso dá-lhe uma componente muito importante que marca a forma de estar. É um homem que descansa a tocar ou a ouvir música. Não é um homem de multidões, não. Eu acho que ele está a fazer um esforço enorme para o seu temperamento, para a sua maneira de ser, enfrentar as multidões que ele tem, apesar de ter diminuído o número de viagens.

Bento XVI pode arrastar multidões?

Os tempos são outros e temos de ter isso em conta. Em 40 anos a sociedade mudou muito, até nos meios de Comunicação Social. Penso que a grande tentação que o nosso povo vai ter, neste momento, é ficar descansado em casa a ver a belíssima reportagem que os meios de comunicação vão oferecer e não perceberem que não é a mesma coisa. Porque para além da pessoa é o Papa, o 'homem vestido de branco'.

Escolheu o Terreiro do Paço para a celebração da missa porquê?

O Terreiro do Paço foi escolhido de propósito e por duas razões: primeiro, porque acho que é a praça mais bonita de Lisboa e, portanto, é a nossa sala de visitas. E acho que Lisboa sem o rio não é a mesma coisa. O diálogo do rio com a cidade é uma coisa congénita, como aliás no Porto também é. Sou particularmente apaixonado por esse diálogo contínuo entre a cidade e o rio. Estamos a celebrar os 50 anos da inauguração do monumento a Cristo Rei e a diocese de Setúbal queria muito que o Santo Padre tivesse um momento no Cristo Rei. É uma visita muito curta e mesmo do ponto de vista logístico não era fácil. Optámos por uma solução que era o Papa celebrar em Lisboa num sítio onde se visse o Cristo Rei e num determinado momento da celebração ter um gesto. Até se chegou a pensar que o Santo Padre acenderia a nova iluminação, mas vai ser complicado porque às 20 horas, naquela altura ainda estará Sol, portanto vai ser complicado com um interruptor acender a nova iluminação da estátua do Cristo Rei.

Papa vai a Fátima mostrar ação de Deus na história

Análise do porta-voz vaticano

CIDADE DO VATICANO, segunda-feira, 10 de maio de 2010 (ZENIT.org).- Bento XVI vai a Fátima mostrar como Deus age na história, um das lições centrais dos aparecimentos da Virgem Maria aos três pastorinhos portugueses, segundo anuncia o porta-voz da Santa Sé.

O Pe. Federico Lombardi SJ, diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, analisa as razões pelas quais o Papa visita Portugal, de 11 a 14 de maio, no 10º aniversário da beatificação de Jacinta e Francisco, no último editorial da publicação semanal Octava Dies do Centro de Televisão Vaticano.

"João Paulo II quis que o ‘terceiro segredo' de Fátima fosse revelado na ocasião da beatificação dos dois pastorinhos, Francisco e Jacinta, durante o Jubileu do ano 2000, transição entre dois milênios. Estava se completando um século caracterizado por grandes sofrimentos, sobre os quais, exatamente, as visões de Fátima deram uma interpretação espiritual dramática e luminosa: tempo de guerra e de martírio, no qual a Igreja e mesmo o Papa compartilham profundamente os sofrimentos e a sede de salvação da humanidade inteira."

"Para duas crianças inocentes, em um lugar insignificante - como é característico dos grandes eventos marianos -, era confiada uma mensagem que, em sua simplicidade, liberava uma força espiritual capaz de superar fronteiras e de ser transmitida além das graves circunstâncias da história da humanidade", sublinha o porta-voz.

O Pe. Lombardi, em seu editorial, pergunta-se o que a mensagem de Fátima pode nos dizer, agora que foi revelado o segredo de fatos que se cumpriram.

Para responder, ele lembra o comentário do então cardeal Joseph Ratzinger na conclusão da publicação do texto do "segredo", no qual dizia: "Ação de Deus, Senhor da história, e corresponsabilidade do homem, em sua dramática e fecunda liberdade, são os dois pilares sobre os nos quais a história da humanidade é construída. A Virgem aparecida em Fátima nos convida a voltar a estes valores esquecidos, para o futuro do homem em Deus, de quem somos parte ativa e responsável".

"Precisamos de olhos límpidos e inocentes para ler o caminho do novo milênio e entender onde seus riscos e as suas mais verdadeiras esperanças estão. A mensagem de Fátima conserva toda a sua seriedade frente à história", conclui o Pe. Lombardi.

08 maio 2010

O meu verdadeiro programa de governo é não fazer a minha vontade

SANTA MISSA
IMPOSIÇÃO DO PÁLIO
E ENTREGA DO ANEL DO PESCADOR
PARA O INÍCIO DO MINISTÉRIO PETRINO DO BISPO DE ROMA
HOMILIA DE SUA SANTIDADE BENTO XVI

Praça de São Pedro
Domingo, 24 de Abril de 2005

Senhores Cardeais
Venerados Irmãos no episcopado e no sacerdócio
Distintas Autoridades
e Membros do Corpo Diplomático
Caríssimos Irmãos e Irmãs!

Por três vezes, nestes dias tão intensos, o cântico das ladainhas dos Santos nos acompanhou: durante o funeral do nosso Santo Padre João Paulo II; por ocasião da entrada dos Cardeais em Conclave, e também hoje, quando as cantamos de novo com a invocação: Tu illum adiuva ampara o novo sucessor de São Pedro. Todas as vezes, de modo totalmente particular ouvi este cântico orante como um grande conforto. Quanto nos sentimos abandonados depois da perda de João Paulo II! O Papa que por 26 anos foi o nosso pastor e guia no caminho através deste tempo.

Ele cruzou o limiar para a outra vida entrando no mistério de Deus. Mas não deu este passo sozinho. Quem crê, nunca está sozinho nem na vida nem na morte. Naquele momento nós pudemos invocar os santos de todos os séculos, os seus amigos, os seus irmãos na fé, sabendo que teriam estado no cortejo vivo que o teria acompanhado no além, até à glória de Deus. Nós sabemos que a sua chegada era esperada. Agora sabemos que ele está entre os seus e está verdadeiramente em sua casa. De novo, fomos confortados cumprindo a solene entrada em conclave, para eleger aquele que o Senhor tinha escolhido. Como podíamos reconhecer o seu nome? Como podiam, 115 Bispos, provenientes de todas as culturas e países, encontrar aquele ao qual o Senhor desejava conferir a missão de ligar e desligar? Mais uma vez, nós o sabíamos: sabíamos que não estávamos sós, que estávamos circundados, conduzidos e guiados pelos amigos de Deus.

E agora, neste momento, eu, frágil servo de Deus, devo assumir esta tarefa inaudita, que realmente supera qualquer capacidade humana. Como posso fazer isto? Como serei capaz de o fazer? Todos vós, queridos amigos, acabaste de invocar todos os santos, representados por alguns dos grandes nomes da história de Deus com os homens. Desta forma, também em mim se reaviva esta autoconsciência: não estou sozinho. Não devo carregar sozinho o que na realidade nunca poderia carregar sozinho. Os numerosos santos de Deus protegem-me, amparam-me e guiam-me. E a vossa oração, queridos amigos, a vossa indulgência, o vosso amor, a vossa fé e a vossa esperança acompanham-me. De facto, à comunidade dos santos não pertencem só as grandes figuras que nos precederam e das quais conhecemos os nomes. Todos nós somos a comunidade dos santos, nós baptizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, nós que vivemos do dom da carne e do sangue de Cristo, por meio do qual ele nos quer transformar e tornar-nos semelhantes a si mesmo.

Sim, a Igreja é viva eis a maravilhosa experiência destes dias. Precisamente nos tristes dias da doença e da morte do Papa isto manifestou-se de modo maravilhoso aos nossos olhos: que a Igreja é viva. E a Igreja é jovem. Ela leva em si o futuro do mundo e por isso mostra também a cada um de nós o caminho para o futuro. A Igreja é viva e nós vemo-lo: experimentamos a alegria que o Ressuscitado prometeu aos seus. A Igreja é viva ela é viva, porque Cristo é vivo, porque verdadeiramente ele ressuscitou. No sofrimento, presente no rosto do Santo Padre nos dias de Páscoa, contemplámos o mistério da paixão de Cristo e, ao mesmo tempo, tocámos nas suas feridas. Mas em todos esses dias também pudemos, num sentido profundo, tocar o Ressuscitado. Foi-nos concedido experimentar a alegria que ele prometeu, depois de um breve tempo de obscuridade, como fruto da sua ressurreição.

A Igreja é viva saúdo assim com grande alegria e gratidão todos vós, que estais aqui reunidos, venerados Irmãos Cardeais e Bispos, caríssimos sacerdotes, diáconos, agentes de pastoral, catequistas. Saúdo a vós, religiosos e religiosas, testemunhas da transfigurante presença de Deus. Saúdo a vós, irmãos leigos, imersos no grande espaço da construção do Reino de Deus que se expande no mundo, em todas as expressões da vida. O discurso torna-se repleto de afecto também na saudação que dirijo a quantos, renascidos no sacramento do Baptismo, ainda não estão em plena comunhão connosco; e a vós irmãos do povo judaico, a quem nos sentimos ligados por um grande património espiritual comum, que afunda as suas raízes nas irrevogáveis promessas de Deus. O meu pensamento, por fim quase como uma onda que se expande dirige-se a todos os homens do nosso tempo, crentes e não crentes.

Queridos amigos! Neste momento não temos necessidade de apresentar um programa de governo. Alguns aspectos daquilo que eu considero minha tarefa, já tive ocasião de os expor na mensagem de quarta-feira 20 de Abril; não faltarão outras ocasiões para o fazer. O meu verdadeiro programa de governo é não fazer a minha vontade, não perseguir ideias minhas, pondo-me contudo à escuta, com a Igreja inteira, da palavra e da vontade do Senhor e deixar-me guiar por Ele, de forma que seja Ele mesmo quem guia a Igreja nesta hora da nossa história. Em vez de expor um programa, gostaria simplesmente de procurar comentar os dois sinais com os quais é representada liturgicamente a assunção do Ministério Petrino; contudo, estes dois sinais reflectem também exactamente o que é proclamado nas leituras de hoje.

O primeiro sinal é o Pálio, tecido em lã pura, que me é colocado sobre os ombros. Este antiquíssimo sinal, que os Bispos de Roma usam desde o século IV, pode ser considerado como uma imagem do jugo de Cristo, que o Bispo desta cidade, o Servo dos Servos de Deus, assume sobre os seus ombros. O jugo de Deus é a vontade de Deus, que nós aceitamos. Esta vontade não é para nós um peso exterior, que nos oprime e nos priva da liberdade. Conhecer o que Deus quer, conhecer qual é o caminho da vida eis a alegria de Israel, era o seu grande privilégio. Esta é também a nossa alegria: a vontade de Deus não nos desvia, mas purifica-nos talvez de maneira até dolorosa e assim conduz-nos a nós mesmos. Desta forma, não servimos só a Ele mas à salvação de todo o mundo, de toda a história. Na realidade o simbolismo do Pálio é ainda mais concreto: a lã do cordeiro pretende representar a ovelha perdida ou também a doente e frágil, que o pastor coloca sobre os ombros e conduz às águas da vida. A parábola da ovelha perdida, que o pastor procura no deserto, era para os Padres da Igreja uma imagem do mistério de Cristo e da Igreja. A humanidade todos nós é a ovelha perdida que, no deserto, já não encontra o caminho. O Filho de Deus não tolera isto; Ele não pode abandonar a humanidade numa condição tão miserável.

Levanta-se de ímpeto, abandona a glória do céu, para reencontrar a ovelha e segui-la, até à cruz. Carrega-a sobre os ombros, leva a nossa humanidade, leva-nos a nós mesmos Ele é o bom pastor, que oferece a sua vida pelas ovelhas. O Pálio diz antes de tudo que todos nós somos guiados por Cristo. Mas ao mesmo tempo convida-nos a levar-nos uns aos outros. Assim o Pálio se torna o símbolo da missão do pastor, de que falam a segunda leitura e o Evangelho. A santa preocupação de Cristo deve animar o pastor: para ele não é indiferente que tantas pessoas vivam no deserto. E existem tantas formas de deserto. Há o deserto da pobreza, o deserto da fome e da sede, o deserto do abandono, da solidão, do amor destruído. Há o deserto da obscuridão de Deus, do esvaziamento das almas que perderam a consciência da dignidade e do caminho do homem. Os desertos exteriores multiplicam-se no mundo, porque os desertos interiores tornaram-se tão amplos. Por isso, os tesouros da terra já não estão ao serviço da edificação do jardim de Deus, no qual todos podem viver, mas tornaram-se escravos dos poderes da exploração e da destruição. A Igreja no seu conjunto, e os Pastores nela, como Cristo, devem pôr-se a caminho, para conduzir os homens fora do deserto, para lugares da vida, da amizade com o Filho de Deus, para Aquele que dá a vida, a vida em plenitude. O símbolo do cordeiro tem ainda outro aspecto. No Antigo Oriente era costume que os reis se designassem como pastores do seu povo. Esta era uma imagem do seu poder, uma imagem cínica: os povos eram para eles como ovelhas, das quais o pastor podia dispor como lhe aprazia. Enquanto o pastor de todos os homens, o Deus vivo, se tornou ele mesmo cordeiro, pôs-se do lado dos cordeiros, daqueles que são esmagados e mortos.

Precisamente assim Ele se revela como o verdadeiro pastor: "Eu sou o bom pastor... Ofereço a minha vida pelas minhas ovelhas", diz Jesus de si mesmo (cf. Jo 10, 14 s). Não é o poder que redime, mas o amor! Este é o sinal de Deus: Ele mesmo é amor. Quantas vezes nós desejaríamos que Deus se mostrasse mais forte. Que atingisse duramente, vencesse o mal e criasse um mundo melhor. Todas as ideologias do poder se justificam assim, justificando a destruição daquilo que se opõe ao progresso e à libertação da humanidade. Nós sofremos pela paciência de Deus. E de igual modo todos temos necessidade da sua plenitude. O Deus, que se tornou cordeiro, diz-nos que o mundo é salvo pelo Crucificado e não por quem crucifica. O mundo é redimido pela plenitude de Deus e destruído pela impaciência dos homens.

Significado da entrega do anel do pescador: conquistar os homens para o Evangelho

Uma das características fundamentais deve ser a de amar os homens que lhe foram confiados, assim como ama Cristo, a cujo serviço se encontra. "Apascenta as minhas ovelhas", diz Cristo a Pedro, e a mim, neste momento. Apascentar significa amar, e amar quer dizer também estar prontos para sofrer. Amar significa: dar às ovelhas o verdadeiro bem, o alimento da verdade de Deus, da palavra de Deus, o alimento da sua presença, que ele nos oferece no Santíssimo Sacramento. Queridos amigos neste momento eu posso dizer apenas: rezai por mim, para que eu aprenda cada vez mais a amar o Senhor. Rezai por mim, para que eu aprenda a amar cada vez mais o seu rebanho vós, a Santa Igreja, cada um de vós singularmente e todos vós juntos. Rezai por mim, para que eu não fuja, por receio, diante dos lobos. Rezai uns pelos outros, para que o Senhor nos guie e nós aprendamos a guiar-nos uns aos outros.

O segundo sinal, com o qual é representado na liturgia de hoje o início do Ministério Petrino, é a entrega do anel do pescador. A chamada de Pedro para ser pastor, que ouvimos no Evangelho, acontece depois de uma pesca abundante: depois de uma noite, durante a qual tinham lançado as redes sem pescar nada, os discípulos vêem na margem do lago o Senhor Ressuscitado. Ele ordena-lhes que voltem a pescar mais uma vez e eis que a rede se enche tanto que eles não conseguem tirá-la para fora da água; 153 peixes grandes: "E apesar de serem tantos, a rede não se rompeu" (Jo 21, 11). Esta narração, no final do caminho terreno de Jesus com os seus discípulos, corresponde a uma narração do início: também então os discípulos não tinham pescado nada durante toda a noite; também então Jesus tinha convidado Simão a fazer-se ao largo mais uma vez.

E Simão, que ainda não era chamado Pedro, deu a admirável resposta: Mestre, porque tu o dizes, lançarei as redes! E eis o conferimento da missão: "Não tenhas receio; de futuro, serás pescador de homens" (Lc 5, 1-11). Também hoje é dito à Igreja e aos sucessores dos apóstolos que se façam ao largo no mar da história e que lancem as redes, para conquistar os homens para o Evangelho para Deus, para Cristo, para a vida. Os Padres dedicaram um comentário muito particular a esta tarefa. Eles dizem assim: para o peixe, criado para a água, é mortal ser tirado para fora do mar. Ele é privado do seu elemento vital para servir de alimento ao homem. Mas na missão do pescador de homens acontece o contrário. Nós homens vivemos alienados, nas águas salgadas do sofrimento e da morte; num mar de obscuridade sem luz. A rede do Evangelho tira-nos para fora das águas da morte e conduz-nos ao esplendor da luz de Deus, na verdadeira vida. É precisamente assim na missão de pescador de homens, no seguimento de Cristo, é necessário conduzir os homens para fora do mar salgado de todas as alienações rumo à terra da vida, rumo à luz de Deus. É precisamente assim: nós existimos para mostrar Deus aos homens. E só onde se vê Deus, começa verdadeiramente a vida. Só quando encontramos em Cristo o Deus vivo, conhecemos o que é a vida. Não somos o produto casual e sem sentido da evolução. Cada um de nós é o fruto de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada um é necessário. Não há nada mais belo do que ser alcançados, surpreendidos pelo Evangelho, por Cristo. Não há nada de mais belo do que conhecê-Lo e comunicar com os outros a Sua amizade. A tarefa do pastor, do pescador de homens muitas vezes pode parecer cansativa. Mas é bela e grande, porque em definitiva é um serviço à alegria, à alegria de Deus que quer entrar no mundo.

Gostaria de realçar aqui mais uma coisa: quer na imagem do pastor quer na do pescador sobressai de maneira muito explícita a chamada à unidade. "Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil. Também estas Eu preciso de as trazer e hão-de ouvir a minha voz; e haverá um só rebanho e um só pastor" (Jo 10, 16), diz Jesus no final do sermão do bom pastor. E a narração dos 153 grandes peixes termina com a gloriosa constatação: "apesar de serem tantos, a rede não se rompeu" (Jo 21, 11). Ai de mim, amado Senhor, agora ela rompeu-se! Poderíamos dizer que sofremos. Mas não não devemos estar tristes! Alegremo-nos pela tua promessa, que não desilude, e façamos o possível para percorrer o caminho rumo à unidade, que tu prometeste. Façamos memória dela na oração ao Senhor, como pedintes: sim, Senhor, recorda-te de tudo o que prometeste. Faz com que sejam um só pastor e um só rebanho! Não permitas que a tua rede se rompa e ajuda-nos a ser servos da unidade!

Neste momento a minha recordação volta ao dia 22 de Outubro de 1978, quando o Papa João Paulo II deu início ao seu ministério aqui na Praça de São Pedro. Ainda, e continuamente, ressoam aos meus ouvidos as suas palavras de então: "Não tenhais medo, abri de par em par as portas a Cristo!" O Papa dirigia-se aos fortes, aos poderosos do mundo, os quais tinham medo que Cristo pudesse tirar algo ao seu poder, se o tivessem deixado entrar e concedido a liberdade à fé. Sim, ele ter-lhes-ia certamente tirado algo: o domínio da corrupção, da perturbação do direito, do arbítrio. Mas não teria tirado nada do que pertence à liberdade do homem, à sua dignidade, à edificação de uma sociedade justa. O Papa falava também a todos os homens, sobretudo aos jovens. Porventura não temos todos nós, de um modo ou de outro, medo, se deixarmos entrar Cristo totalmente dentro de nós, se nos abrirmos completamente a Ele, medo de que Ele possa tirar-nos algo da nossa vida? Não temos porventura medo de renunciar a algo de grandioso, único, que torna a vida tão bela? Não arriscamos depois de nos encontrarmos na angústia e privados da liberdade? E mais uma vez o Papa queria dizer: não! Quem faz entrar Cristo, nada perde, nada absolutamente nada daquilo que torna a vida livre, bela e grande. Não! Só nesta amizade se abrem de par em par as portas da vida. Só nesta amizade se abrem realmente as grandes potencialidades da condição humana. Só nesta amizade experimentámos o que é belo e o que liberta. Assim, eu gostaria com grande força e convicção, partindo da experiência de uma longa vida pessoal, de vos dizer hoje, queridos jovens: não tenhais medo de Cristo! Ele não tira nada, ele dá tudo. Quem se doa por Ele, recebe o cêntuplo. Sim, abri de par em par as portas a Cristo e encontrareis a vida verdadeira. Amém.

Copyright © Libreria Editrice Vaticana

01 maio 2010

Bento XVI promente trabalhar sem poupar energias na reconstituição da plena e visível unidade de todos os seguidores de Cristo


SANTA MISSA PELA IGREJA UNIVERSAL

PRIMEIRA MENSAGEM DE SUA SANTIDADE BENTO XVI
NO FINAL DA CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA
COM OS CARDEAIS ELEITORES NA CAPELA SISTINA

Quarta-feira, 20 de Abril de 2005

Venerados Irmãos Cardeais
Caríssimos
Irmãos e Irmãs em Cristo
Vós todos, homens e mulheres
de boa vontade!

1. Graça e paz em abundância para todos vós (cf. 1 Pd 1, 2)! Convivem no meu coração nestas horas dois sentimentos contrastantes. Por um lado, um sentido de inaptidão e de humana perturbação pela responsabilidade que ontem me foi confiada, como Sucessor do Apóstolo Pedro nesta Sede de Roma, diante da Igreja universal. Por outro lado, sinto viva em mim uma profunda gratidão a Deus, que como nos faz cantar a liturgia não abandona o seu rebanho, mas o guia através dos tempos, sob a guia de quantos Ele mesmo elegeu vigários do seu Filho e constituiu pastores (cf. Prefácio dos Apóstolos I).

Caríssimos, este reconhecimento íntimo por um dom da divina misericórdia prevalece apesar de tudo no meu coração. E considero este facto uma graça especial que me foi obtida pelo meu venerado Predecessor, João Paulo II. Tenho a impressão de sentir a sua mão forte que estreita a minha; parece que vejo os seus olhos sorridentes e que ouço as suas palavras, dirigidas neste momento particularmente a mim: "Não tenhas medo!".

A morte do Santo Padre João Paulo II, e os dias que se seguiram, foram para a Igreja e para o mundo inteiro um tempo extraordinário de graça. O grande sofrimento pelo seu desaparecimento e o sentido de vazio que deixou em todos foram atenuados pela acção de Cristo ressuscitado, que se manifestou durante longos dias na coral onda de fé, de amor e de espiritual solidariedade, que teve o ponto mais alto nas suas solenes exéquias.

Podemos dizê-lo: os funerais de João Paulo II foram uma experiência verdadeiramente extraordinária na qual se sentiu de certa forma o poder de Deus que, através da sua Igreja, deseja formar, de todos os povos, uma grande família, mediante a força unificadora da Verdade e do Amor (cf. Lumen gentium, 1). Na hora da morte, conformado com o seu Mestre e Senhor, João Paulo II coroou o seu longo e fecundo Pontificado, confirmando na fé o povo cristão, reunindo-o à sua volta e fazendo com que toda a família humana se sentisse mais unida.

Como não nos sentirmos amparados por este testemunho? Como não sentir o encorajamento que provém deste acontecimento de graça?

2. Surpreendendo qualquer minha previsão, a Providência divina, através do voto dos venerados Padres Cardeais, chamou-me a suceder a este grande Papa. Nestas horas penso de novo em tudo o que aconteceu na região de Cesareia de Filipe, há dois mil anos. Parece que ouço as palavras de Pedro: "Tu és Cristo, o Filho de Deus vivo", e a solene afirmação do Senhor: "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja... dar-te-ei as chaves do Reino do Céu" (Mt 16, 15-19).

Tu és o Cristo! Tu és Pedro! Parece-me reviver a mesma cena evangélica; eu, Sucessor de Pedro, repito com trepidação as palavras trepidantes do pescador da Galileia e ouço novamente com íntima emoção a promessa tranquilizante do divino Mestre. Se é enorme o peso da responsabilidade que recai sobre os meus pobres ombros, é certamente desmedido o poder divino sobre o qual posso contar: "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja" (Mt 16, 18). Ao escolher-me para Bispo de Roma, o Senhor quis-me para seu Vigário, quis-me "pedra" sobre a qual todos possam apoiar-se com segurança. Peço-Lhe que auxilie a pobreza das minhas forças, para que eu seja corajoso e fiel Pastor do seu rebanho, sempre dócil às inspirações do seu Espírito.

Preparo-me para empreender este peculiar ministério, o ministério "petrino" ao serviço da Igreja universal, com humilde abandono nas mãos da Providência de Deus. É em primeiro lugar a Cristo que renovo a minha total e confiante adesão: "In Te, Domine, speravi; non confundar in aeternum!".

A vós, Senhores Cardeais, com o ânimo grato pela confiança que me demonstrastes, peço que me apoieis com a oração e a constante, activa e sábia colaboração. Peço também a todos os Irmãos no Episcopado que me acompanhem com a oração e com os conselhos, para que eu possa ser verdadeiramente o Servus servorum Dei. Assim como Pedro e como os outros Apóstolos constituíram por vontade do Senhor um único Colégio apostólico, do mesmo modo o Sucessor de Pedro e os Bispos, sucessores dos Apóstolos o Concílio recordou-o com vigor (cf. Lumen gentium, 22) devem estar entre si intimamente unidos. Esta comunhão colegial, mesmo se na diversidade dos papéis e das funções do Romano Pontífice e dos Bispos, está ao serviço da Igreja e da unidade na fé, da qual depende em grande medida a eficiência da acção evangelizadora no mundo contemporâneo. Por conseguinte, por esta vereda pela qual caminharam os meus venerados Predecessores, também eu pretendo prosseguir unicamente preocupado em proclamar ao mundo inteiro a presença viva de Cristo.

3. Tenho às minha frente, em particular, o testemunho do Papa João Paulo II. Ele deixa uma Igreja mais corajosa, mais livre, mais jovem. Uma Igreja que, segundo o seu ensinamento e exemplo, olha com serenidade para o passado e não tem medo do futuro. Com o Grande Jubileu foi introduzida no novo milénio levando nas mãos o Evangelho, aplicado ao mundo actual através da autorizada repetida leitura do Concílio Vaticano II. Justamente o Papa João Paulo II indicou o Concílio como "bússula" com a qual orientar-se no vasto oceano do terceiro milénio (cf, Carta apost. Novo millennio ineunte, 57-58). Também no seu Testamento espiritual ele anotava: "Estou convencido que ainda será concedido às novas gerações haurir das riquezas que este Concílio do século XX nos concedeu" (17.III.2000).

Por conseguinte, também eu, ao preparar-me para o serviço que é próprio do Sucessor de Pedro, desejo afirmar com vigor a vontade decidida de prosseguir no compromisso de actuação do Concílio Vaticano II, no seguimento dos meus Predecessores e em fiel continuidade com a bimilenária tradição da Igreja. Celebrar-se-á precisamente este ano o 40º aniversário da conclusão da Assembleia conciliar (8 de Dezembro de 1965). Com o passar dos anos, os Documentos conciliares não perderam actualidade; ao contrário, os seus ensinamentos revelam-se particularmente pertinentes em relação às novas situações da Igreja e da actual sociedade globalizada.

4. De maneira mais do que nunca significativa, o meu Pontificado começa no momento em que a Igreja está a viver o especial Ano dedicado à Eucaristia. Como não tirar desta providencial coincidência um elemento que deve caracterizar o ministério para o qual fui chamado? A Eucaristia, coração da vida cristã e fonte da missão evangelizadora da Igreja, não pode deixar de constituir o centro permanente e a fonte do serviço petrino que me foi oferecido.

A Eucaristia torna constantemente presente Cristo ressuscitado, que continua a oferecer-se a nós, chamando-nos a participar da mesa do seu Corpo e do seu Sangue. Da comunhão plena com Ele brotam todos os outros elementos da vida da Igreja, em primeiro lugar a comunhão entre todos os fiéis, o compromisso de anúncio e testemunho do Evangelho, o fervor da caridade para com todos, especialmente para com os mais pobres e pequeninos.

Por conseguinte, neste ano deverá ser celebrada com particular relevo a Solenidade do Corpus Domini. Depois, a Eucaristia estará no centro, em Agosto, da Jornada Mundial da Juventude em Colónia, que se desenvolverá sobre o tema: "A Eucaristia: fonte e ápice da vida e da missão da Igreja". Peço a todos que intensifiquem nos próximos meses o amor e a devoção a Jesus Eucaristia e que exprimam de modo corajoso e claro a fé na presença real do Senhor, sobretudo mediante a solenidade e a rectidão das celebrações.

Peço isto de modo especial aos Sacerdotes, nos quais penso neste momento com grande afecto. O Sacerdócio ministerial nasceu no Cenáculo, juntamente com a Eucaristia, como muitas vezes realçou o meu venerado Predecessor João Paulo II. "A existência sacerdotal deve a título especial tomar "forma eucarística"", escreveu na sua última Carta para a Quinta-Feira Santa (n. 1). Para esta finalidade contribui antes de mais a devota celebração quotidiana da sua santa Missa, centro da vida e da missão de cada Sacerdote.

5. Alimentados e sustentados pela Eucaristia, os católicos não podem deixar de se sentir estimulados a tender para aquela unidade plena que Cristo desejou ardentemente no Cenáculo. Deste supremo anseio do Mestre divino o Sucessor de Pedro deve ocupar-se de modo muito especial. De facto, a ele foi confiada a tarefa de confirmar os irmãos (cf. Lc 22, 32).

Por conseguinte, com plena consciência, no início do seu ministério na Igreja de Roma, na qual Pedro derramou o seu sangue, o actual Sucessor assume como compromisso primário o de trabalhar sem poupar energias na reconstituição da plena e visível unidade de todos os seguidores de Cristo. Esta é a sua ambição, este é o seu impelente dever. Ele está consciente de que para isto não são suficientes as manifestações de bons sentimentos. São necessários gestos concretos que entrem nos corações e despertem as consciências, enternecendo cada um àquela conversão interior que é o pressuposto de qualquer progresso pelo caminho do ecumenismo.

O diálogo teológico é necessário, o aprofundamento das motivações históricas de opções feitas no passado também é indispensável. Mas o que é mais urgente é aquela "purificação da memória", tantas vezes recordada por João Paulo II, a única que pode predispor os ânimos ao acolhimento da plena verdade de Cristo. É diante d'Ele, supremo Juiz de cada ser vivo, que cada um de nós se deve apresentar, na autoconsciência de que um dia Lhe deve prestar contas por tudo o que fez ou não em relação ao grande bem da plena e visível unidade de todos os seus discípulos.

O actual Sucessor de Pedro deixa-se interpelar em primeira pessoa por esta exigência e está disposto a fazer tudo o que estiver em seu poder para promover a fundamental causa do ecumenismo. No seguimento dos seus Predecessores, ele está plenamente determinado a cultivar todas as iniciativas que possam parecer oportunas para promover os contactos e o entendimento com os representantes das diversas Igrejas e Comunidades eclesiais. Aliás, envia também a eles nesta ocasião a saudação mais cordial em Cristo, único Senhor de todos.

6. Neste momento, volto com a memória à inesquecível experiência vivida por todos nós por ocasião da morte e dos funerais do saudoso João Paulo II, Em volta dos seus despojos mortais, colocados na terra nua, reuniram-se os Chefes das Nações, pessoas de todas as camadas sociais, e sobretudo jovens, num inesquecível abraço de afecto e de admiração. Para ele olhou com confiança todo o mundo. Pareceu a muitos que aquela intensa participação, amplificada até aos confins do planeta pelos meios de comunicação social, fosse como um coral pedido de ajuda dirigido ao Papa da parte da humanidade de hoje que, perturbada por incertezas e temores, se interroga sobre o seu futuro.

A Igreja de hoje deve reavivar em si mesma a consciência da tarefa de repropor ao mundo a voz d'Aquele que disse: "Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida" (Jo 8, 12). Ao empreender o seu ministério o novo Papa sabe que a sua tarefa é fazer resplandecer aos olhos dos homens e das mulheres de hoje a luz de Cristo: não a sua, mas a verdadeira luz do próprio Cristo.

Com esta consciência dirijo-me a todos os que seguem outras religiões ou que simplesmente procuram uma resposta para os interrogativos fundamentais da existência e ainda não a encontraram. Dirijo-me a todos com simplicidade e afecto, para garantir que a Igreja quer continuar a tecer com eles um diálogo aberto e sincero, na busca do verdadeiro bem do homem e da sociedade.

Peço instantemente a Deus a unidade e a paz para a família humana e declaro a disponibilidade de todos os católicos na cooperação de um autêntico desenvolvimento social, respeitador da dignidade de cada ser humano.

Não pouparei esforços nem dedicação para prosseguir o prometedor diálogo iniciado pelos meus venerados Predecessores com as diversas civilizações, porque da compreensão recíproca surgem as condições de um futuro para todos.

Penso em particular nos jovens. A eles, interlocutores privilegiados do Papa João Paulo II, dirijo o meu abraço afectuoso na expectativa, se Deus quiser, de me encontrar com Eles em Colónia por ocasião da próxima Jornada Mundial da Juventude. Convosco, amados jovens, futuro e esperança da Igreja e da humanidade, continuarei a dialogar, ouvindo as vossas expectativas com a intenção de vos ajudar a encontrar sempre mais em profundidade o Cristo vivo, o eternamente jovem.

7. Mane nobiscum, Domine! Permanece connosco, Senhor! Esta invocação, que forma o tema dominante da Carta apostólica de João Paulo II para o Ano da Eucaristia, é a oração que brota espontânea do meu coração, enquanto me preparo para iniciar o ministério ao qual Cristo me chamou. Como Pedro, também eu Lhe renovo a minha incondicionada promessa de fidelidade. Ele é o único que pretendo servir dedicando-me totalmente ao serviço da sua Igreja.

Para amparar esta promessa invoco a intercessão materna de Maria Santíssima, em cujas mãos confio o presente e o futuro da minha pessoa e da Igreja. Intervenham com a sua intercessão também os Santos Apóstolos Pedro e Paulo e todos os Santos.

Com estes sentimentos concedo a vós, venerados Irmãos Cardeais, a quantos participam neste rito e a todos os que escutam através da televisão e da rádio uma especial, afectuosa Bênção.

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